BELÉM, MEU AMOR
A noite mais
azul é quando
Assassinos me perseguem, derroto-os
E durmo com a princesa.
Isto só acontece nas noites tão azuis
Que um Boeing 777 ferem-nas
E sangue verte sobre as rosas,
Que o acme da princesa
Transforma em rosas colombianas.
A noite mais azul é tórrida e os jasmineiros choram,
O mundo recende a maresia
E a gordura do meu corpo
Volta a ser rija como os punhos de Muhammad Ali
Quando ele acabou com George Foreman, no Zaire.
Transformo-me em luz
Na noite excessivamente azul
Vivi um mergulho em Belém do Pará, transitando desde o ventre dos seus
palácios aos lixões. Casei-me e exilei-me do lar; trabalhei ao lado dos
melhores jornalistas da cidade e caí na clandestinidade do desemprego;
fartei-me da culinária mais inacreditavelmente deliciosa do planeta e forjei o
espartano que há em mim durante um período de fome; compartilhei camas
perfumadas e percorri labirintos femininos intermináveis, mas também
escorreguei no negro limo da fossa. Conheço, pois, alguns humores desta
península que avança na baía de Guajará como um navio iluminado, e minha
amante.
Amo todas as cidades nas quais já vivi, e até
Brasília, onde moro, pois não se pode viver numa cidade sem a amar; não por
muito tempo. E se as amamos, o reencontro provoca o cataclismo do primeiro
beijo, sacodem-nos, lançam-nos no espaço, como nos sonhos, que, às vezes,
povoam minhas noites, como se estivesse correndo numa planície de zínias e
rosas, cortada pelo maior rio do mundo e desaguando na noite, prenhe de jasmineiros
que choram perfume. As cidades que amamos evocam amores, madrugadas, papel em
branco, álcool, imortalidade.
Namorei carnalmente, Macapá, minha cidade natal,
durante os primeiros 17 anos da minha existência, até que um dia peguei o rio e
a estrada e rolei para Copacabana. Nosso namoro continua firme, mas agora só no
coração. Também amo o Rio de Janeiro, por quem fui seduzido para sempre. Manaus
é a mesma coisa, e em cada cidade a vida se multiplica infinitamente. Como em
Brasília, onde nasceu Iasmim, a princesinha que encanta todos os dias da minha
vida. Mas Belém emerge do rio como mulher nua, que deixa um rastro de maresia,
Chanel 5, Dom Pérignon, safra de 1954, e rosas vermelhas. Tento alcançá-la,
temeroso de perdê-la. Porém, ela se volta e pronuncia meu nome. Sua voz é como
o pulsar da música de Mozart. Alcanço-a, pego-a pelo cogote e a beijo, e sinto
o sabor de acme.
Nem os ratos – que se dedicam a te assaltar, a te
depredar, a te estuprar, que te mordem os seios – conspurcam tua beleza, nem
reduzem tua eternidade, desde 12 de janeiro de 1616, quando lusitanos,
comandados por Francisco Caldeira Castelo Branco, desembarcaram numa enseada na
foz do rio Guamá e começaram a construir uma fortaleza, o Forte do Presépio, em
torno do qual a cidade foi emergindo, e a ela chamaram de Santa Maria de Belém.
Os tupinambás não deram descanso aos invasores. Mas
os portugueses dominavam armas de fogo, a Igreja e doenças letais. E em 1626,
assumiu o comando Bento Maciel Parente. Os colonizadores eram brutais, mas
pareciam gentis diante da loucura de Bento Maciel Parente; ele que mandava
amarrar os membros de tupinambás capturados, em cavalos ou canoas, até serem
rasgados, vivos. Estima-se que pelo menos 2 milhões de índios foram
assassinados na Amazônia, escravizados em nome de Jesus Cristo, atingidos por
doenças europeias, degolados, esquartejados ou fuzilados.
No começo do século 20, a borracha tornou Belém a
cidade mais rica do país. Em 1910, os ingleses começaram a produzir látex no
sudeste asiático, causando a débâcle da borracha na Amazônia. Aí começou o
declínio de Belém. Hoje, é uma cidade sucateada, inchada, violenta, infestada
de bandoleiros e ratazanas, as ruas emporcalhadas de esgoto escorrendo no
meio-fio, cidadela corrompida, refém da corrupção, letal como câncer
metastático.
Mesmo assim, Belém é como as mangueiras de
dezembro, que se curvam prenhes de frutos, doces como seios de mulher na rede.
É assim que ela vive no meu coração. Quando chegamos ao amanhecer, pela baía do
Guajará, nós, que a amamos, vemo-la se despir, aos poucos, da névoa, até
emergir, de repente, salpicando água, nuazinha; se chegamos de avião e é noite,
as luzes na península, como miríade na noite que desaba sobre a baía,
anunciam-se como óvnis, até pousarmos no bolsão de sol noturno de Val-de-Cães.
Subitamente, os gigantescos pneus do jato se chocam no chão de concreto e a
nave começa a taxiar rumo ao terminal de passageiros. À tarde, o céu sangra de
tão azul.
Então, já não controlo meu coração. Faço desjejum
no Ver-O-Peso, café recém coado com tapioquinha amanteigada, e depois vou
apreciar os peixes dispostos nos balcões de mármore do mercado – os pirarucus
são, talvez, os mais bonitos, os filhotes são enormes e os meros, imensos, há
sempre piramutaba, pescada, tucunaré, curimatã, tamuatá, mapará, gurijuba,
camarão e toda sorte de frutos do mar. Almoço camarão com pirão de açaí no
Ver-O-Peso, ou filhote no Restaurante Remada, ou ventrecha de dourada com
vinagrete e farofa na Vila Sorriso, ou pirarucu ao molho de castanha-do-pará no
Mangal das Garças. À tarde, vagabundeio, tomo tacacá na banca do Colégio Nazaré
e sorvete de tapioca na Cairu, e, à noite, janto caldeirada de filhote no
Remada e bebo Cerpinha no banheiro do hotel, enquanto me arrumo para o encontro
com a madrugada. Assim, os dias se sucedem com cheiro de maresia, mulheres
caminhando, merengue, bebedeiras, o rio.
Belém é a Catedral da Virgem, rosas para a
madrugada, lembranças guardadas numa prece, o desfile interminável das mulheres
mais bonitas do mundo, que exalam perfume das virgens ruivas e espargem um
rastro de devaneio, que só podemos sentir com o coração. Ungido pelos deuses,
penetro neste santuário e dele engravido para sempre. Belém, como as mulheres
muito bonitas, inesgotáveis de tão intensas, desencadeia, na minha memória, um
cataclismo de rosas colombianas, jasmineiros chorando em noite tórrida, o céu
de julho na Amazônia, que sangra no azul na tarde.
Caminho nas suas ruas rumo aos segredos que só eu
posso decifrar, como ouvir o anoitecer na Estação das Docas, ver passar as
mulheres mais bonitas do mundo enquanto tomo tacacá defronte ao Colégio Nazaré,
ouvir o rio, beber o perfume de gim inglês no Cosa Nostra, a alegria das
mulheres no Kalamazoo, ao som de merengue e da madrugada, e fazer uma declaração
de amor desesperado, porque as cidades, como as mulheres, não podem ser
decifradas; precisam apenas ser amadas, pois só para isso existem, como poemas
escritos por Deus.
Da mesma forma que as mulheres, as cidades são
redes intermináveis de labirintos, abismos de segredos, pelos quais voamos,
sempre perdidos, mas firmemente guiados pelo azul mais azul. Cidades,
exatamente como as mulheres, iluminam nossos sentidos, e as cavalgamos como se
monta a luz.
Sentado no calçadão defronte ao Colégio Nossa
Senhora de Nazaré, ao embalo das 6 horas da tarde, caminho ao lado de cada uma
das mulheres que passam, e que deixam um rastro de espilantol, sintetizando
todo o mistério sob seus vestidos estampados, de seda. Então, descubro o
segredo da Hileia, deslindo o mistério, e, assim, o amplio: toda a Amazônia
está contida no espilantol de um ramo de jambu. E, aos iniciados, Belém se
revela em toda a sua poesia, como mulher ao toucador, absorta, nua.
Agora estou sentado na Estação das Docas. A tarde
morre. Ouço murmúrios – risos distantes, preces, merengue. Pedi à Virgem de
Nazaré que proteja as crianças e as flores. A tarde morre, escorre como um rio
de luzes que se afogam no mar da noite, para ressurgir no ventre da cidade,
como uma boca. Acomodado numa cadeira de palhinha, observo o rio e a tarde
morrendo. Ouço o riso das mulheres mais sensuais do mundo, trotando nos
calçadões, sentadas, tomando tacacá, naquele momento em que a noite cai
lentamente, se acamando, até as luzes tremeluzirem, como composição de Debussy,
e sinto o sabor do leite da mulher amada, lábios de rosas esmigalhadas,
vermelhas.
Um navio parte. Talvez vá para Macapá, ou Trinidad
e Tobago. Talvez vá para Caiena. Ou para Mosqueiro. Ou Salinas. De qualquer
forma, haverá de ir para um lugar lindo, pois a tarde é povoada de mulheres em
vestidos de seda, como uma negra caribenha, sílfide equina, que passa,
iluminando o mundo. Vindo de algum lugar, remoto, penso ouvir merengue. O mundo
gira. Sinto a vertigem de missa na Catedral; a noite é como o mistério feminino,
uma prece, e, assim, tenho certeza de que estou em Belém.
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• RAY CUNHA – Escritor e
Jornalista baseado em Brasília-DF, Brasil
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