Abismo de Rosas
BRASÍLIA – Não resisti, e lhe
disse oi! Ela não respondeu; nem eu esperava quesequer me olhasse. E depois,
não era o melhor momento para ela; eu, que gosto de todas as horas do dia e da
noite, sempre sinto que aquele é um instante especial, de transição, uma zona
indefinível, mais uma sensação, como quando estamos numa sala de espera e de
repente sentimos cheiro de maresia, sabor de Dom Pérignon, safra de 1954, e
insinua-se a música de Nino Rota, e então percebemos que tudo isso ocorreu à
passagem de uma mulher, na eternidade de dez segundos. Assim era o fim da
tarde, de quem ainda se podia sentir o calor, agonizante, dando lugar às
moléculas da noite e às luzes. Era aquele momento suave como a prece de um rio
de planície, lento, a caminho, sem importar-se para onde vai, e que apenas
segue. Mulheres, que acabaram de deixar o local de trabalho, passavam pela
calçada, frescas e perfumadas, ao encontro do mistério. A propósito, as
mulheres são veios prenhes de diamantes vermelhos.
Ali estava eu, hipnotizado. Fora merendar, como gostamos de dizer na
minha cidade natal, Macapá, aquela cidade que flutua na margem esquerda do
estuário do rio Amazonas, esquina da Linha Imaginária do Equador, onde falta
água encanada, não há esgotamento sanitário e as ruas são as mais esburacadas
do planeta. Acho o Pão de Açúcar a melhor rede de supermercados do país, e a
loja da 516 Sul, a melhor de Brasília. Pois bem, era lá que eu estava. Fora
comer croquete de carne. O de lá é saboroso. O pão francês é delicioso também.
Em Brasília, costuma-se dizer pão de sal. Prefiro pão francês, pois tenho um
relacionamento íntimo com as palavras, e pão francês remete-me a padarias
iluminadas na aurora, como navios na ressaca; dá-me a sensação de pão que
acabou de ser tirado do forno, a manteiga a derreter-se nele, e a café com
leite. E só encontro meu café favorito no Pão de Açúcar: Três Corações,
gourmet, e arábica, naturalmente.
Ao vê-la, esqueci completamente o que fora fazer ali. Ela era tão linda
que parecia despida, nua, absorta, no pufe diante do toucador, santuário
proibido aos homens, porque, por mais que um homem queira apossar-se de uma
mulher, ele se perderá num abismo de rosas, e somente ela poderá guiá-lo, com
segurança, para ele mesmo. De modo que nós, homens, estamos absolutamente
enganados quando somos possuídos pelo pensamento, movediço, de que podemos nos
tornar donos de uma mulher. As mulheres são, como as rosas, eternamente livres.
Eu sabia, sempre soube, que ela não me responderia, quando lhe disse
oi!, porque elas nem sequer nos percebem; acho que nós, homens, vibramos numa
frequência muito bruta para elas, que vivem num mundo sutil, onde apenas alguns
artistas, como Mozart, Beethouven, Antoine de Saint-Exupéry, penetram, porque
eles sabem com o coração. Mas não resisto quando as vejo; sinto-me leão de asas
e experimento voos rasantes nos vales da luz, onde nasce o acme do primeiro
beijo.
Tudo ocorreu num segundo infinito. Anoitecia, e as rosas não são as
mesmas em todas as horas do dia. Ao alvorecer, e se prenunciar-se um dia de
sol, elas são tão lindas como mulher feliz na boate, iluminadas pelo olhar fervoroso
do seu homem; haverá algo mais lindo que mulher dançando? Só há as rosas, e
aquela era colombiana, vermelha, e nua. Pode parecer estranho, uma obsessão, ou
falta de senso, eu me referir a rosas nuas. É que só podemos despir as rosas se
as vermos com a necessária pureza, da mesma forma que as mulheres, que só se
entregam sem reservas quando sentem que seu homem lhes chega por meio do
coração.
As rosas, ao anoitecer, são como minúsculos frascos de essência, que,
nas manhãs ensolaradas, impregnam o Cosmo de divino perfume, vibrando numa
frequência sutil, no éter. Depois do encontro, e nada é por acaso, pois eu
poderia ter tomado outro caminho que não fosse o da floricultura, senti que
mergulhava, inexoravelmente, no azul.
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• RAY CUNHA – Escritor e Jornalista baseado em Brasíia-DF, Brasil
• RAY CUNHA – Escritor e Jornalista baseado em Brasíia-DF, Brasil
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