ANTONIO TAVERNARD,
assim como Icoaraci, foi esquecido
De acordo com o advogado, jornalista, poeta e escritor Carlos Correia Santos, era o dia dez de outubro de 1908, ou seja, 1908, dois dias após o aniversário da nossa Vila Sorriso. As cercanias da capital do Estado do Pará viviam o desde sempre mágico da procissão de mais um do Círio de Nazaré. Inspirados por todo aquele clima, o Mistério, a Força e a Beleza resolveram dar-se as mãos e se puseram a passear pela antiga Vila dos Pinheiros (atual Icoaraci) . O destino? Rua Siqueira Mendes, 585. Eles sabiam que um bom amigo estava por nascer dali a pouco. Do interior de um chalé português de fachada estreitada e angulosa, em frente à baía, ouve-se um choro que parece ir se misturar às águas do rio. Chegava à vida – para uma vida tão curta e intensa – um dos mais arrebatadores poetas de que todo Norte teria notícia: Antônio de Nazareth Frazão Tavernard.
Em sua cama, exausta pelo parto, mas
firme e enlevada, Marietta Frazão Tavernard toma nos braços uma joia rara,
preciosidade que nortearia seu viver daquele momento em diante. Orgulhoso, o
pai, Othilio Tavernard, saúda o destino. Ali estava um herdeiro para eternizar
o seu sobrenome. Batizado como Antônio, o varão logo passaria a ser tratado
afetuosamente por Tony. Sua chegada representava um consolo. O casal já havia
perdido a primeira filha, Adélia. Naquele bebê se depositavam outra vez os
sonhos paternos que inspiram um primeiro filho.
Ao sabor do clima bucólico da Vila
dos Pinheiros e embalado pelo rio que seus olhos sonhadores veriam sempre como
um mar, Tony inicia uma infância calma, suave. Fase banhada pelos ventos da
maré. Diria ele: “Nasci em frente ao mar/ Meu primeiro vagido misturou-se ao
fragor do seu bramido/ Tenho a vida do mar!/ Tenho a alma do mar!”. Um menino
ansioso por tudo que fosse novidade começava sua trajetória, tal como descreve
no belo poema “Similitudes”. Um menino ansioso por tudo que fosse novidade
começava sua trajetória.
A família muda-se para a capital,
Belém. O endereço novo era outro chalé em estilo lusitano, agora na Avenida
Conselheiro Furtado, esquina com a Generalíssimo Deodoro. Seguindo o costume da
época, a residência precisava de um nome que logo é escolhido: Retiro São
Benedito. O lugar correspondia à perfeita tradução do que eram, no período, os
lares dessa região da cidade. Espécies de chácaras acolhedoras e amplas,
cercadas por verde. As calçadas largas distribuíam-se pelas partes laterais e
frontais do prédio. Nos fundos, um quintal todo cercado por estacas de acapu.
Terreno amplo que acolheria muitas alegrias e amarguras.
Tony iniciou o primário no Externato
Santa Mônica, dirigido pela professora Clarisse Proença, e concluiria o curso
com o professor João Pereira de Castro, cuja responsabilidade era encaminhar os
pupilos ao curso secundário. O jovem Antônio desde cedo se revelou um aluno
exemplar, acima da média dos colegas. Um amigo do pai de Tony assim o
definiria: “Tavernard, tens um filho que é um verdadeiro gato para saltar e
pegar bola e uma águia na cultura”.
A verve artística do garoto foi em
muito alimentada pela atmosfera boêmia da Belém das primeiras décadas do século
XX. Era um tempo em que vizinhos formavam entre si uma verdadeira comunidade. À
noite, em frente aos portões dos chalés e sobrados, reuniam-se os amigos da rua
para saudar o luar com serenatas e declamações de poemas. Choravam os violões,
suspiravam as moças. Era tudo romantismo e encanto. Quando chegava o Círio, o
São João ou o Carnaval, os Tavernard abriam seu amplo quintal para a alegria
dos cordões, pastoris e noitadas nazarenas. A obra do futuro escritor seria um
grande bordado de tudo aquilo.
Com a chegada dos onze anos, chegava
para Tony o tempo de ingressar no Ginásio Paraense (atual Paes de Carvalho).
Ele não muda: mantém-se aquele misto raro de menino maroto e brilhante. Foi
naquele centro educacional que começou a alimentar o gosto por seus próprios
versos. Eram poemas que escrevia para o jornalzinho do colégio, o C.P.C. A essa
altura, já aposentado, Othilio Tavernard trabalhava como redator no jornal “A
Província do Pará” (onde chegaria a gerente, na administração do amigo Pedro
Chermont de Miranda). Ali estava um espaço aberto para o crescente talento do
filho. Tony teve a chance de publicar várias de suas poesias no jornal. Desta
feita, novas portas foram se abrindo.
O DRAMA - Concluído o curso preparatório de humanidades, o poeta
matricula-se na Faculdade de Direito do Pará. Era o ano de 1926 e tudo na vida
daquele excepcional rapaz de dezoito anos está para mudar dramaticamente. Tony
cai doente. Médicos, exames e surge, por fim, o diagnóstico: hanseníase. A
doença, vulgarmente conhecida como lepra, era, então, incurável. Nada podia ser
feito pelo garoto. Uma cruel realidade lhe bate ao rosto: viver um doloroso
processo degenerativo. O mundo dos sonhos, uma carreira promissora, toda uma juventude
fadada ao fim. Antônio Tavernard escreve: “Acharam muito que eu sorrisse tanto/
e fizeram com que na minha boca/ morresse o riso e despontasse o pranto”. Ele
não pôde sequer concluir o primeiro ano da Faculdade. Decidiu que era preciso
se recolher, afastar-se do inevitável preconceito que o vitimaria. Precisava
isolar-se para encontrar uma forma qualquer de renascer.
Atendendo a um pedido do filho,
Othilio manda construir nos fundos da casa um pequeno chalé. Lugar que o
enfermo poeta chamaria de “Rancho Fundo”. Antevendo-se alguma emergência, um
sistema especial de sineta é criado, unindo o prédio principal à pequena casa.
Para o local são transportados todos os pertences do rapaz. Sobretudo, suas
preciosidades: livros, jornais, revistas, resmas de papel e canetas. Passado o
choque inicial imposto pela nova realidade, Tony não sucumbe à angústia.
Floresce em sua alma um dos mais impressionantes testemunhos de coragem já
vistos. Sua fé, no lugar de esmorecer, torna-se imbatível. Era preciso que as
lágrimas se transformassem em fonte de algo mais, que virassem o minar da mais
vibrante e arrebatadora arte. Incentivado pela fiel e devotada amiga, sua mãe,
ele dá início a uma produção literária assustadoramente bela.
A sombra da doença traz para a alma
de Tony um tom místico, um estilo visceral. Aos 19 anos, ele já conta com uma
vasta gama de trabalhos, torna-se um artista conhecido e respeitado pela
classe. Com esta mesma idade, obteve o segundo lugar no concurso nacional de
contos da revista “Primeira”, passando a colaborador da publicação. Seria ainda
redator-chefe da revista “A Semana” e colaborador em quase toda a imprensa do
país.
Os amigos de verdade não se afastam
de Tony. E amigos novos surgem, interessados em se aproximar daquela alma que
conseguia fazer de sua tragédia pessoal gênese para tanta beleza. O Rancho
Fundo em nada se tornou um centro de solidão. Rodas de violeiros, boêmios e
poetas formavam-se ao redor do leito de Tony. E ele poetiza: “Meu São João/ na
noite do vosso dia/ com fogueiras brilhando de alegria/ com alegrias cantando
num rojão/ parai um pouco na melancolia/ do meu portão”.
Personalidades vinham de longe
conhecer tão cativante criatura. Fernando Castro, um dos amigos de Tony, dada
ocasião, pediu-lhe para que recebesse o intelectual Paschoal Carlos Magno, que
visitava Belém e insistia em conhecer o poeta. Uma vez apresentados por
Fernando, Magno teria falado: “Muito prazer em conhecer o novo Machado de
Assis”, ao que Tony responderia: “Com uma grande diferença: menos talento e
mais sofrimento”.
Em 1929, o poeta finaliza seu
primeiro livro. Uma coletânea de contos que atendia pelo sugestivo título de
“Fêmea”. A obra reunia textos com temáticas ousadas para a época. A capa ganhou
a provocativa ilustração de uma mulher nua, de costas e pendurada nas palavras
Antônio Tavernard. Desenho assinado pelo pintor peruano Roberto Reynoso. O
livro é editado no ano seguinte, causando reações díspares no meio literário:
de um lado, desaprovação; do outro, aplausos.
Ainda em 1930, em parceria com o
amigo Fernando Castro, Tavernard lançaria a comédia “A menina dos 20.000”. Era
a prova de que o poeta sabia, como poucos, alimentar sua veia humorística,
mesmo em meio a seu drama. Tony escreve ainda para o teatro as deliciosas peças
“Seringadela”, “Que tarde” e “Paratí”.
Um marcante enlace entre duas dádivas
da arte paraense acontece no ano de 1932. Outra vez cumprindo o papel de ponte,
Fernando Castro une Antônio Tavernard ao jovem compositor Waldemar Henrique. Os
dois, no entanto, jamais se veriam pessoalmente, pois o poeta já vivia em total
reclusão no Rancho Fundo. Apesar da distância, o entrosamento entre os três
artistas foi absoluto. Decidiram montar um espetáculo teatral a ser encenado na
quadra nazarena. O objetivo era reverter a renda em prol do próprio Tony, já
bastante debilitado pela enfermidade. Fernando tomou para si o encargo de fazer
os textos da revista teatral que se chamaria “A casa da viúva Costa”. A
Tavernard caberia a parte poética e a Waldemar, as partituras dos números
musicais. Em outubro de 32 a peça é encenada num dos vários teatrinhos do
arraial de Nazaré, recebendo críticas altamente elogiosas por parte da
imprensa: “Todos três têm talento até para ceder por empréstimo”, estamparia um
periódico. Bilhetes e telefonemas tornaram-se os aliados de Waldemar e Tony na
troca de ideias e inspiração. Desse modo, os dois idealizaram uma série de
canções inspiradas nas lendas amazônicas. Apenas duas, entretanto, chegariam a
ser concluídas: “Foi Boto, Sinhá” e “Matinta Pereira”. O tempo para desenvolver
aquele promissor enlace artístico fez-se diminuto. A doença avançava pelo
interior de Tony de forma impiedosa e voraz.
Era o dia 02 de maio de 1936. Manhã
clara, amena A sineta do Rancho Fundo toca com angústia. D. Marietta corre em
busca do filho, o bebê que tomara no colo na Vila dos Pinheiros. A matriarca
manda que chamem Othilio no trabalho com urgência. Sabendo o que estava por
acontecer, ela conduz o poeta para fora de seu refúgio e, outra vez tomando-o
nos braços, acomoda-se numa cadeira de balanço. A própria imagem da Pietá. Nos
braços da mãe, Tony fecha os olhos por definitivo. Aos vinte oito anos, o anjo
alado por versos é levado de volta à eternidade pelo Mistério, pela Força e
pela Beleza.
Faleceu
vítima da hanseníase, incurável nos tempos do poeta. .
Dias depois do enterro, uma vizinha revelaria
a família ter sonhado com o poeta, todo vestido com uma túnica branca,
procurando sentar-se e dizendo, arfante: “Graças a Deus, cheguei!”.
Autor da
letra do hino do Clube do Remo, parceiro de Waldemar Henrique, comparado a
Machado de Assis, Antônio Tavernard - meu conterrâneio com muito carinho -é patrimônio das letras amazônicas.
Para orgulho da gente icoaraciense!
Antônio
Tavernard foi tema de dissertação de Mestrado, para
obtenção do Grau de Mestrado em Estudos Literários. da
professora Isabela de Almeida Alves Jangoux, junto à
Universidade Federal do Pará – em 2011.
Um belo poesia de Antônio Tavernard:
Nasci em frente ao mar.
Meu primeiro vagido
misturou-se ao fragor do seu bramido
Tenho a vida do mar!
Tenho a alma do mar!
A mesma inquietude indefinível,
que nele é onda, e é em mim anseio,
faz-nos tremer, faz-nos fremir, faz-nos vibrar.
Às vezes, creio
que da minha loucura do impossível
sofre também o mar.
Tenho a sua amplidão iluminada
- o meu amor; e seu velário de brumas
- minha mágoa.
Ruge a tormenta... e o que ele faz com a frágua:
embates colossais,
faço com a minha fé petrificada...
té que tudo se extingue em turbilhões de espumas
e de lágrimas... Destinos abismais!...
Guarda em si tempestades que estraçoam,
Cóleras formidáveis em mim guardo...
Sobre o meu pensamento, ideias voam,
voam alciões sobre o seu dorso pardo...
Meu gigantesco irmão,
Senhor do cataclismo,
se tens, por coração, um negro abismo,
eu tenho, por abismo, um coração.
Dentro de ti, quantos naufrágios, quantos,
de naves rotas pelos vendavais?!...
E, dentro de mim, sob aguaçais de prantos,
quantos naufrágios, quantos, quantos,
de sonhos, de ilusões e de ideais?!...
Faço trovas a alguém que não posso beijar
tal como tu, na angústia de querê-las
sem as poder tocar,
fazes, nas noites brancas de luar,
serenatas inúteis às estrelas...
Sou bem fraco, porém, e tu és forte...
Nada te vencerá, há de vencer-me a morte...
Embora!... Mar morto, água dormida
que por mais nada nem de leve ondeia,
hei de deixar meus versos pela vida,
como tu deixas âmbar pela areia!...
• • • • •
CARLOS CORREIA SANTOS é pesquisador e escritor premiado
nacionalmente, autor, dentre outras obras, das peças "Nu Nery",
"Ópera Profano" e do romance "Velas na Tapera". Atualmente
é a maior autoridade em estudos sobre a vida e a obra da Antônio Tavernard, a
quem agradeço pelas informações e pelo
apoio.
• • • • •
CASA DE ANTONIO TAVERNARD
A Casa em que viveu Antônio Tavernard não mais
existe. Assim como seu proprietário não existe, foi esquecida.
As paredes em estilo colonial, transformaram-se em escombros e entulhos e entulhos. Portas e janelas vieram abaixo pela ação do tempo. O mato tomou conta de todo o interior do imóvel, com raízes espalhadas naquele que deveria ser um patrimônio histórico preservado, um testemunho da vida e obra do autor e também um dos tesouros históricos de Icoaraci, que a cada ano vê seus casarões desaparecerem nas estações chuvosas.
E não foi por falta de aviso. O Jornal do Feio, nesses quase sete anos no
ar, chamou a atenção, por várias vezes, das autoridades para o problema. O
redator deste espaço também fez a sua parte: através do jornal O ESTADO e da
imprensa denunciou abandono e o descaso do Governo papara com o imóvel.
Foram realizadas várias reportagens no rádio, jornal e TV , mais ninguém deu a mínima
O ator e estudante universitário Evanildo Mercês .desabafa ao relatar o
estado da edificação. “Essa situação é um desrespeito à sociedade paraense. A
casa que deveria ser, pela sua forte simbologia, um espaço dinâmico da
linguagem literária ou de realização de atividades artístico-culturais
permanentes não passa de ruínas invadidas pelo matagal da área que cresce a
cada dia, destruindo os restos mortais do prédio, dando, ao mesmo tempo, lugar
a uma paisagem urbana desastrosa, fedida e aterradora”, diz ele.
Entre os moradores que frequentam as proximidades do local, é comum perceber movimentações de mendigos e assaltantes, que utilizam o terreno como ponto de esconderijo durante a noite.
Ainda bem que a área não foi invadida!
Procurados pelos jornais locais, os órgãos públicos apontam possíveis motivos para a situação do problema. Segundo umas fontr Secretaria de Cultura do Estado (Secult), a casa do poeta foi repassada à Secretaria de Segurança Pública (Segup) ainda na primeira adminisuração Simão . Durante esse período, a casa ficou sem nenhuma manutenção. Ainda de acordo com as informações, a Secult começou um processo de negociação com a Segup para retomar o imóvel e, desta forma, realizar um projeto de revitalização. A Segup também foi consultada e não se manifestou
A questão é que o imóvel- atualmente uma área de feio aspecto -, de grande importância histórica está preso entre os trâmites burocráticos do poder público. Como o governo não assumiu a responsabilidade pelo local, não sobraram nem as colunas da casa como testemunhas da história do poeta.
Procurados pelos jornais locais, os órgãos públicos apontam possíveis motivos para a situação do problema. Segundo umas fontr Secretaria de Cultura do Estado (Secult), a casa do poeta foi repassada à Secretaria de Segurança Pública (Segup) ainda na primeira adminisuração Simão . Durante esse período, a casa ficou sem nenhuma manutenção. Ainda de acordo com as informações, a Secult começou um processo de negociação com a Segup para retomar o imóvel e, desta forma, realizar um projeto de revitalização. A Segup também foi consultada e não se manifestou
A questão é que o imóvel- atualmente uma área de feio aspecto -, de grande importância histórica está preso entre os trâmites burocráticos do poder público. Como o governo não assumiu a responsabilidade pelo local, não sobraram nem as colunas da casa como testemunhas da história do poeta.
Por sinal, que só é possível reconhecê-la graças a uma placa trilíngue
(em português, inglês e francês) com os seguintes dizeres: “Casa do Poeta
Antônio Tavernard. Casarão antigo do século passado”.
Na Casa do Poeta Antônio Tavernard – que, repito com multa revolta, foi
esquecida pelos Governos Estadual e Municipal – nasceram as Academias Paraenses de Jornalismo, sob a inspiração de Lucinerdes Couto; e Academia Paraense de
Letras Interioranas, tendo a frente Lucy Gorayeb Mourão, além de sediar outros movimentos
sociais e culturais.
Dia 10 de outubro passado, se estivesse vivo, Antônio Tavernard – teria
completado 76 anos.
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