Como deve o acupunturista proceder
nos casos das paixões avassaladoras?
Haverá agulha tão comprida, e fina,
que atinja a alma?
Ou prescindiriam, os danados, de
cura?
Pois os pacientes desse mal, ou
bênção, sobrevivem nas trevas e na luz
São cinza e asas
E seus corações atingem a velocidade
dos despenhadeiros
Do mergulho no maremoto
Do olho do furacão
Do desespero
Não será tamanho sentimento, em si
mesmo, o triunfo?
Voo concedido a poucos?
Eterno porque agora?
Creio que descobri um mal – ou
bênção?
Que a acupuntura não sana
Pois como apagar a luz com luz
Como ouvir o som da Terra no espaço
Se o coração não se inflama?
O terapeuta, mestre em artes marciais e poeta Emanoel Vorcaro, graduado em mandarim e medicina tradicional chinesa em Pequim, tinha 61 anos, mas parecia ter 70. Perdera a esposa em acidente no Rio de Janeiro. O automóvel que bateu na porta do carro conduzido pela esposa de Vorcaro levava apenas o motorista, um rapaz que ainda durou o tempo de confessar que voltava de uma bacanal na noite anterior e ingerira uma garrafada de drogas. Vorcaro sobreviveu ileso. Sobreviveu é modo de dizer; transformou-se em morto-vivo. Seu apelido no Instituto Holístico, dito à socapa, era zumbi. Na tarde que antecedeu a tragédia descobrira, de uma só tacada, que sua mulher não engravidava porque era estéril, e era ninfomaníaca, a ponto de fornicar até dez vezes em um dia com homens diferentes. Nunca entrava no quarto de trabalho da esposa, modelo de moda em ascensão. Naquela tarde o gato entrou lá, pois a porta, que jamais ficava destrancada, encontrava-se entreaberta. Vorcaro foi atrás do gato e o encontrou sentado no fundo de um armário, sobre uma agenda; um diário. Quando Eliana chegou, Vorcaro fez que já estava dormindo e passou a noite em claro. Depois que ela pegou num sono profundo, olhou-a demoradamente. Era linda, e a amava demais. Quando amanheceu o dia ela o estranhou, pois ele parecia ter envelhecido dez anos. Saíram juntos. O pensamento recorrente o matava. Seria ódio? Desespero? Desencanto? Fosse lá o que fosse, sentia no coração, tragando-o, um abismo de fogo. E então aconteceu. Na época, o caminho que Vorcaro vislumbrou para não se matar foi a cidade-estado, onde morava seu pai, professor na Universidade de Brasília. Passou também em concurso na UnB, como professor de mandarim, e logo depois começou a lecionar medicina tradicional chinesa no Instituto Holístico, onde conheceu o professor Ricardo Larroyed, acupunturista e delegado especial da Coordenação de Repressão a Homicídios da Polícia Civil do Distrito Federal, juntamente com quem fundou a Clínica de Terapias Holísticas, que funcionava em prédio próprio. Ricardo Larroyed e Emanoel Vorcaro investiram todas as suas economias na clínica, localizada na 909 Sul, fazendo divisa com o Parque da Cidade. Seu quintal era sombreado por três mangueiras gigantescas. Podia-se sentir o odor das mangas, inchadas, verdes e amarelas, em pencas, vergando os galhos, lindas como seios de lactante. “São as mangueiras mais bonitas da cidade” – orgulhava-se Ricardo Larroyed. Naquele ano ainda não chovera para valer e a safra das mangueiras públicas foi magra, até porque elas começam a ser agredidas com as mangas ainda verdes. Larroyed só não vira pessoas de terno jogando paus, pedras e mangas verdes em outras mangas verdes; o chão, debaixo das mangueiras de Brasília, estava sempre pontilhado de folhas, pedaços de galho e, naturalmente, mangas verdes.
Em
conversa com uma colega major, que fazia o curso de medicina tradicional
chinesa no Instituto Holístico, Francisco Nolasco foi orientado a levar sua
irmã, Rosa Nolasco, para ser atendida, segundo a major, pelo professor mais
brilhante do curso, Emanoel Vorcaro. Rosa Nolasco era tão linda que os homens
com o dom do olhar clínico desejavam engoli-la, engravidar-se dela, e sentir o
eterno e intenso triunfo da maternidade. Brasiliense da gema, filha de
diplomata americano e uma potra de Belo Horizonte, era dessas mulheres que
param o trânsito, literalmente, daí porque raramente são vistas caminhando na
rua; escondem-se em automóveis indevassáveis, de onde saltam para atravessar
apenas uma calçada, sempre de óculos escuros. E seu elemento é a noite. Ruiva,
os cabelos caindo como ervas daninhas numa cascata caudalosa até ancas
africanas – herança da mistura entre um lusitano e uma princesa moçambicana em
uma geração bem anterior à sua –, a pele rosada, olhos verdes como folhas de
jambu, lábios grandes, grossos e vermelhos, nariz arrebitado, e um sorriso que
era uma queda para cima, foi estuprada a primeira vez aos 14 anos, idade em que
a mulher ainda é criança, prestes a se transformar em borboleta. Depois dessa
primeira vez, o autor, um tio de 40 anos, estuprou-a mais oito vezes, até ela
engravidar e ser conduzida a um matadouro, onde sangrou a ponto de quase
morrer, resgatada pelo seu irmão, Francisco Nolasco, major da Polícia Militar
do Distrito Federal, atirador de elite. O tio, um tal de José Antônio, foi
encontrado com os bagos e o pênis destroçados a tiros e uma bala na hipófise,
flutuando no Lago Paranoá, onde promovia bacanais pantagruélicas. Aos 17 anos,
Rosa, uma flor de 1,80 metro e 70 quilos, iniciava a profissão de modelo, em
plena tragédia, pois quase todo mundo que gravitava em torno dela queria
predá-la, incluindo mulheres invejosas, mas seu maior predador era ela mesma.
Passara por muitas camas, abortos e a exploração mais abjeta, porém seu corpo
tinha a invulnerabilidade das rosas, que são frágeis, mas eternas. Sua tragédia
perpassava pelo histórico das mulheres da família: o mal instalara-se com fúria
no seu útero: uma colônia de miomas.
Quando
Rosa Nolasco chegou, o professor Emanoel Vorcaro a aguardava. Ele dividia seu
tempo entre a Universidade de Brasília, o Instituto Holístico, a Clínica de
Terapias Holísticas e sua casa, na 703 Sul. Estava lendo alguma coisa quando os
irmãos entraram no consultório. Vorcaro deixou de lado o que estivera lendo e
pousou os olhos mortos nos olhos dela, e assim permaneceu por tempo excessivo,
como um especialista em iridologia perscruta a alma do paciente, mergulhando
nos subterrâneos labirínticos, nos pântanos, nas pradarias, nos jardins, no
sol, nos olhos de Rosa Nolasco, que, de manhã, assumiam uma nuança azul; à
medida que o dia avançava, e quanto mais calor fizesse, então as esmeraldas
surgiam em meio aos arbustos rubros; e, à noite, eram como jambu, prenhes de
espilantol. Emanoel Vorcaro gemeu. Provavelmente o gemido foi mental. A
eternidade daqueles segundos o inebriara: sentiu cheiro de mar, ouviu risos de
crianças, a voz de Frank Sinatra em alguma alcova perdida na paisagem vista da
janela daquele quarto de hotel, em Paris, ao cair da noite, naquele momento e
condições que tornam gentil todo o mundo, e viu sua esposa com seu filho
imaginário no colo, rindo o riso cristalino das mulheres lindíssimas, e que o
perseguia aonde quer que fosse.
Vorcaro
cumprimentou-os e leu as anotações da assistente da manhã: Rosa Silvestre
Nolasco, nascida em 1 de outubro de 1998, em Brasília, onde mora. Altura: 1,80
metro; 70 quilos. Aluna do curso de moda. Profissão: modelo. Solteira. Ele
perguntou a queixa principal. Mioma no útero; menstruação abundante; irritação;
muita sede. O útero já havia quadruplicado de tamanho.
–
O médico quer operar; quer, não, disse que é inevitável, e pelo volume do mioma
terá que ser extirpado todo o útero por meio de corte no ventre, como se fosse
cesariana. Não quero isso! – ela exclamou. – Quero ter filhos! – suplicou.
–
Oh! Não! Não será preciso operar! – disse Vorcaro, sem perceber o que estava
prometendo. – Como e quando começou o problema e como evoluiu? – perguntou.
–
As mulheres da minha família, todas têm mioma; depois que tiram, engravidam
normalmente – ela disse. – No meu caso, comecei a sangrar muito; o médico
passou vários exames e foi diagnosticado mioma, quadruplicando o tamanho do
útero; meu útero está com um quilo e cem gramas, e não foi encontrado nenhum
ferro no meu sangue, estou anêmica – choramingou. – Aí o médico receitou
Noripum venoso, num total de oito doses, e dois comprimidos de Tâmisa por dia,
para parar o sangramento. Eu não quero ser operada!
Fumante?
Não! Alergia? Não!
Nessas
altura o major pediu licença e saiu da sala.
Dorme
bem? Sim, a não ser que comece a sentir cólica ou comece a sangrar. E agora,
você continua a sangrar? Não, agora, não! Com os dois anticoncepcionais por dia
parei de sangrar! Come muito? Não. Prefere alimentos frios ou quentes? Frios.
Ou melhor, gelados. Bebo muita água gelada! Bebe pelo menos dois litros de água
por dia? Sim, bebo muita água! E sempre gelada; às vezes como gelo! Como é sua
respiração? Normal! E a transpiração? Normal! E a visão? Leio até em corpo
oito; minha visão é uma verdadeira lupa! Sua fala é boa! Como são suas fezes?
Como é? São ressequidas ou moles? Acho que são normais! Você vai quantas vezes
ao vazo por dia? Pelo menos uma vez! Você sente gosto amargo na boca? Não!
Sente alguma dor? Só cólicas! Preciso ver sua língua!
Depois
de tanto tempo sem pensar nos mistérios femininos – já certo de que nunca mais
voltaria a sentir aquela sensação de montar a luz, pois tinha a impressão de
que se transformara em fantasma, ou em zumbi, como diziam lá na escola –, a
vida explodiu como um big-bang, e todo o tecido negro se transformou em
estrelas. Quando viu a boca de Rosa Nolasco tão perto, seus dentes perfeitos,
como pequenas esculturas de marfim, os lábios imensos, vermelhos, não prestou
atenção na língua, pálida, ligeiramente seca e levemente inchada, denteada e
com fissura no centro; só lhe ocorreu que o que via era uma língua para ser
sugada como uva. Ela a recolheu. Emanoel Vorcaro estava tremendo. Era um homem
sereno, mesmo após a tragédia que o matou. Mas estava tremendo. Respirou fundo,
pegou-lhe os pulsos e se concentrou. O fígado estava em corda e vibrava como
contrabaixo, os rins quase não se manifestavam, e o baço, mesmo derrotado,
lutava, e haveria de lutar muito, defendendo aquele corpo perfeito, conspurcado
pela tara genética. “Insuficiência de xue, deficiência de Qi do rim e do baço”
– pensou.
O
major retornara.
–
Rosa, você terá que se submeter a sessões diárias por dez dias, além de tomar
um xarope que eu mesmo prepararei para você, e ingerir alguns alimentos que
também vou prescrever. No fim de dez dias, avaliaremos o quadro. Se não houver
melhora, você terá mesmo que se submeter à cirurgia, que hoje é corriqueira –
Vorcaro explicou-lhe.
–
Pensei que com acupuntura eu não precisasse me submeter à cirurgia! – ela
respondeu, alarmada.
–
Acupuntura, ou medicina tradicional chinesa, não resolve tudo; há muitas coisas
em que a medicina ocidental é imbatível, especialmente na utilização de tecnologia
de ponta e no avanço de fármacos, sem falar na habilidade de cirurgiões
talentosos. Mas a MTC, que é uma medicina holística, é importante para
compreendermos a nós mesmos, e por que somos acometidos de doenças. Senti nos
seus pulsos, e isso é possível, anjinhos chorando, crianças que não chegaram a
nascer – ele disse.
Ela
começou a chorar. As lágrimas saltavam dos olhos como se fossem gotículas
minadas de dois lagos prenhes de clorofila. O impulso que o professor Francisco
Vorcaro sentia era de tomá-la nos braços, beber as lágrimas e sufocá-la com
seus lábios murchos.
–
Doutor, ela já sofreu vários abortos – o major, que havia retornado, informou.
–
Seria bom ela conferir quantos foram, dar nome às crianças, nomes ambíguos, que
possam servir tanto para homens quanto para mulheres, e batizá-los segundo sua
religião – disse o professor.
–
É uma quantidade tão grande que eu nem sei se há tantos nomes ambíguos – volveu
o major, meio cínico.
–
Nesse caso podem ser utilizados também nomes que não sejam ambíguos – insistiu
o professor, ignorando o humor negro do major. – Bem, agora vou fazer nela
acupuntura e aurículo.
–
Professor, preciso ir à PM; a que horas o senhor acha que poderei vir
apanhá-la? – o major perguntou.
–
São 10h30; meio-dia já terei feito tudo. O atendimento dela será demorado
porque é a primeira vez, e também o caso requer todos os recursos de que
disponibilizamos. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para que a Rosa não
precise se submeter a cirurgia; mas afirmo, desde já, que, se for o caso,
trata-se de uma cirurgia, como disse, comum, hoje em dia, e a sutura é perfeita
como a de uma cesariana.
–
Mas se eu for operada como poderei ter filhos? Vão extrair meu útero! – ela
gritou, levantando-se e dirigindo-se para a baia onde seria atendida. – A única
saída é a acupuntura; daí porque procurei o senhor – disse, lá de dentro.
Quando
Emanoel Vorcaro entrou e a viu nua sentiu o sangue irrompendo no seu corpo
todo, como tsunami. Rosa Nolasco deitara-se nua sobre a maca. Naquele ambiente
séptico e luminoso, seus cabelos assumiam nuanças de ouro e rubi, derramando-se
quase até o chão, em grandes anéis, jorros de metal líquido, escorrendo. Os
seios, naquela posição, pareciam duas montanhas aureoladas, movendo-se ao ritmo
da respiração. Descendo pelas encostas das montanhas, a planície do ventre
lembrava uma tábua esculpida em mármore. O olhar do professor Emanoel Vorcaro
havia montado na luz e gravitava naquela miragem até pousar no púbis cintilando
no meio da galáxia.
– Oh! Não! Não precisa! – Vorcaro balbuciou. – Não precisa ficar nua! Vou pegar
uma toalha para cobri-la!
– É melhor eu ficar logo nua. Estou acostumada. Assim é melhor para você me
examinar – ela respondeu.
– Seu irmão pode chegar... – Vorcaro balbuciou.
– Você tem medo de ser preso? – ela riu. – Ele acha natural. Andávamos nus, em
casa. Foi assim que meu primo, que Deus o tenha, matou-me – ela disse e se
calou.
Seguiu-se um pouco de silêncio, Vorcaro cobrindo-a. Era uma grande toalha rosa,
uma bela toalha de algodão, alva como a pele de Rosa Nolasco, e que se
confundia com a epiderme sem mácula da modelo. Só os cabelos contrastavam com a
toalha, na sua natureza incandescente, estase de lava.
– É praxe cobrirmos os pacientes – Vorcaro continuava balbuciando.
– Sou toda sua – Rosa murmurou, quase debochada.
Vorcaro estava sem graça em torno da miragem na maca.
– Bem, mioma é basicamente umidade – balbuciou. – Vou tocá-la! Posso? – disse,
voltando a si, aos poucos, e readquirindo a velha confiança. Podia se encontrar
na situação que se encontrasse, e podia atender quem quer que fosse, Gisele
Bündchen que fosse, quando começava a atender seu papel de terapeuta assumia o
comando. Levantou a toalha e apalpou o ventre e o púbis, e pôde sentir os
tumores. Apurou o olfato – poderia ter sido um “nariz”, aquele profissional da
indústria de perfume que pode sentir as essências mais tênues – e farejou o
púbis, que exalava o perfume das virgens ruivas, uma essência tão penetrante
que parece material. “É daquelas mulheres que voltam a ser virgens não importa
quantas vezes sejam penetradas; têm bezerro; a musculatura e a rede de vasos
sanguíneos da vagina são excepcionais” – pensou. E sentiu também o miasma. “No
caso dela, parece um carma que vem passando de mãe para filha. Mas todo carma
tem fim. Só a eternidade não tem fim; neste mundo carnal tudo tem fim” –
pensou, alimentando o velho desejo de desencarnar e encontrar noutra dimensão a
sua amada. Apanhou a ficha.
Miomatose
uterina; menstruação abundante; irritação; muita sede. Língua pálida, ligeiramente
seca e levemente inchada, denteada e com fissura no centro – Insuficiência de
xue, deficiência do Qi do baço; deficiência de yin. Alimentação energética a
ser prescrita: consumir açaí puro, couve, espinafre e alimentos verdes em geral
e de cor laranja. Abóbora no jantar. Chá de gergelim preto antes de deitar-se.
Xarope de babosa. Ele prepararia o xarope naquela noite. Compraria Aloe vera na
Feira do Guará. Também aproveitaria para renovar o estoque de mel de abelha do
Piauí, que é do que gostava. Quanto à aguardente, usaria aquela garrafa de
conhaque francês que ganhara de um amigo; não lembrava mais nem do nome do
amigo, quanto mais da marca do conhaque. Um branco havia descido na sua memória
há tempo. Compraria o equivalente a um metro de babosa, extrairia a gelatina e
misturaria com um litro de mel e uma dose de conhaque; ela tomaria uma colher
das de sopa entre as refeições. Retiraria da sua alimentação leite e derivados,
farinhas brancas e água gelada, e começaria o tratamento com o TA18, para harmonizar
o Qi do útero e transformar umidade em calor; F14 e F3, para regularizar o
fígado; BP10, para regular a menstruação; BP9, para tirar umidade ativando o
aquecedor inferior; e E40, para eliminar muco, além do VG20, para purificá-la.
“Depois, aurículo!”
O
major Francisco Nolasco chegou ao meio-dia em ponto e encontrou uma Rosa
sorridente. “O maracujá de gaveta deu um jeito nela” – pensou.
A
próxima sessão foi marcada para o dia seguinte, quando o xarope de babosa já
estaria pronto e a paciente começaria a tomá-lo. O professor Vorcaro pretendia
debelar a colônia de miomas em dez dias. Sabia do seu poder, pois não curara
até paciente com câncer?
O
início daquela tarde de sexta-feira era sufocante, mas ali, na Feira do Guará,
um dos poucos locais aonde o professor Vorcaro ia e se divertia, estava
agradável, devido à aragem que perpassava o grande galpão, o passa-passa, o
cheiro das frutas, dos peixes, de tudo o que era bom. Enquanto o professor se
dirigia ao quiosque onde comprava Aloe vera, seu subconsciente repassava
algumas informações.
Os
chineses usavam babosa como medicamento há 6 mil anos; há 2 mil anos, o médico
grego Penadius Dioscorides enumerou seu uso para a pele, queimaduras, manchas,
perda de cabelo e indisposição estomacal. Na Bíblia, é chamada de "árvore
perfumada" e "resina perfumada", e teria sido misturada à mirra
para embalsamar Jesus. Marinheiros de Cristóvão Colombo e missionários no Novo
Mundo, antigas tribos do México e das Américas Central e do Sul a utilizaram.
Nativa do norte da África, com mais de 200 espécies catalogadas, das quais
apenas quatro são úteis e seguras para seres humanos, trata-se de um dos
alimentos mais ricos em gliconutrientes, composto de 12 vitaminas, 15 enzimas,
18 aminoácidos – inclusive os principais compostos do corpo humano –, 20
minerais, 75 nutrientes e mais de 150 princípios ativos. Floresce no começo da
primavera. Suas folhas, verdes e gelatinosas, têm espinhos e crescem como
lanças, em formação de roseta, tal qual pétalas de rosa, até 75 centímetros, e
podem pesar até 2,3 quilos cada uma. Originária de regiões desérticas, adquiriu
capacidade de sobreviver em meio hostil, e deu-se bem no trópico. É utilizada
geralmente em problemas relacionados à pele, como acne, queimadura, psoríase,
hanseníase etc. Poderoso regenerador e antioxidante natural, com propriedades
antibacteriana e cicatrizante, e capacidade de reidratar tecidos, inclusive o
capilar, aplicado sobre queimadura ajuda rapidamente a anular a dor, pelo seu
efeito reidratante e calmante, reparando, lentamente, o tecido queimado; também
conduz nutrientes para as células e regula o trânsito intestinal. Historiadores
há que apontam a babosa como o grande segredo da beleza de Cleópatra, que a
utilizaria para tratar sua pele, que encantava a todos que puderam vê-la, e,
especialmente, aos que puderam tocá-la, acariciá-la, sentir o sabor da sua
pele, o sabor da pele de Rosa Nolasco! A pele de Rosa Nolasco tinha a natureza
dos vestidos de seda rosa! – Emanoel Vorcaro acordou. Precisava desalojar a colônia
de miomas, desalojá-la do útero de Rosa Nolasco, pulverizá-la. Poria na fórmula
o talento terapêutico necessário para salvar o útero daquela miragem ruiva, que
irrompeu numa inundação de luz na escuridão em que ele morria. Precisava
aliviar-se daquela sensação, de, simultaneamente, mergulhar ainda mais fundo no
inferno e alçar-se ao limite da galáxia, num acme permanente de fogo no
coração. Precisava meditar com o VG20 espetado no alto da cabeça.
Pensava
nisso enquanto comia. Comer, e vestir-se elegantemente, geralmente de terno de
linho, e sempre de panamá, eram seu grande prazer depois da medicina
tradicional chinesa. Quantos pacientes com mioma saíram curadas das suas mãos?
Inclusive o caso Cátia, aquela moça que não tinha dinheiro nem para pegar ônibus
e a quem ele pagou transporte e alimentação. Seu caso era desesperador. Fora
diagnosticada na rede pública mas esperava a cirurgia há três anos, sangrando.
Recuperara-a com açaí, suco de couve, xarope de babosa e limpeza dos meridianos
do baço, fígado e rins. É verdade que a encaminhara para a Seicho-No-Ie, onde
uma preletora, amiga de Ricardo Larroyed, cuidou da moça; ela batia de frente
contra o pai, cachaceiro, para quem passou a fazer oração de perdão. Assim, no
mundo espiritual, a paciente teria se curado, o que se refletira na dimensão
material. De qualquer forma cumprira sua parte e a moça estava recuperada.
Também conseguiu emprego para ela e que voltasse a estudar, e foi um triunfo
quando ela passou no vestibular da Universidade de Brasília para psicologia,
graduara-se e já estava trabalhando.
Sentado
no Café e Restaurante Dona Neide, “como um peixe”, pois o refeitório parecia um
aquário, seus pensamentos voavam enquanto devorava a rabada, “a melhor de
Brasília”. Ia ali pelo menos uma vez por semana, às vezes no sábado, com
Ricardo Larroyed, só pela rabada, e aproveitava para fazer uma das coisas que
lhe proporcionavam prazer: caminhar pela feira, ver e sentir o cheiro das
frutas, dos peixes, das aves abatidas, dos legumes e verduras, dos temperos,
das essências, o perfume das virgens ruivas, “o cheiro mais perturbador do
mundo”. Perdera a vontade de viver, mas não a urgência dos odores. “Cheirar é
preciso; viver não é preciso.” E então a essência que sentira naquela manhã
assaltou-o como um vendaval.
Estacionou
na garagem seu velho Gol que um dia fora vermelho e entrou diretamente na sala
da casa, na 703 Sul, deixou o material na cozinha, foi ao quarto, trocou de
roupa e retornou à cozinha, onde pôs-se a trabalhar. Gostava daquela cozinha;
aliás, gostava, muito, da casa toda, herança do seu pai. Podia-se ver, da rua
defronte ao prédio e da janela do quarto no segundo andar, o Santuário Dom
Bosco. Ali era tranquilo, especialmente na ampla biblioteca, provavelmente a
maior de Brasília em títulos da medicina tradicional chinesa.
A
reunião no Instituto Holístico naquela sexta-feira à noite voltou ao seu
consciente. A questão a ser discutida era o seguinte: havia uma corrente de
professores que desprezava Giovanni Maciocia, adotado pela escola. “Maciocia é
um gênio” – pensou. “Ninguém, no Ocidente, é autor de uma bibliografia mais
ampla sobre medicina chinesa do que Maciocia.” Com efeito, Giovanni Maciocia
começou a se dedicar à medicina chinesa desde 1974. Professor e terapeuta,
publicou sete livros, traduzidos em mais de dez idiomas. Com formação em
economia, em Nápoles, o ensaísta italiano se mudou para a Inglaterra, onde
obteve bacharelado em acupuntura, em 1974, no Colégio Internacional de Medicina
Oriental. Estudioso do mandarim, fez três cursos de pós-graduação na
Universidade de Medicina Tradicional Chinesa em Nanjing. Publicou seu primeiro
livro, Os Fundamentos da Medicina Chinesa, em 1989,
constituindo-se, desde então, em obra de referência para o estudo de medicina
chinesa em várias escolas dos Estados Unidos. Em 1995, publicou uma linha de
fórmulas de fitoterapia chinesa, Os Três Tesouros, adaptação
moderna de prescrições de clássicos chineses. “Tiro meu chapéu para ele! É
impressionante como o Bartolomeu o detesta.”
Bartolomeu
Amado, o bafo de onça, era também médico em medicina tradicional chinesa
formado na China, e comportava-se como se ainda vivesse lá. “Ele está se
matando; viver como se estivesse na China, em Brasília, é loucura. Acho que seu
bafo de onça e aquela cara cheia de marcas de espinha é de tanto comer peixe
mal conservado, escorpião, cachorro e pimenta” – ria, na, talvez, única
situação em que se dava ao luxo de satirizar alguém e rir, pois, de certa
forma, sentia-se como o professor Bartolomeu, matando-se, ou, no seu caso,
morrendo. Contudo, o professor Bartolomeu era bastante popular na escola, entre
os rebeldes sem causa, justamente por sua teimosia em contrariar Giovanni
Maciocia durante suas aulas. Seria difícil o diretor do Instituto Holístico, professor
Marcelo Quintela, dobrá-lo.
“Bartolomeu
Amado tem conhecimento enciclopédico de medicina tradicional chinesa, porém é
vítima de dois pecados: é arrogante e preguiçoso. Vou pegar aquele biltre” –
pensou, deixando tudo pronto para, na volta, preparar o xarope para a deusa
ruiva. Encontraria com Ricardo Larroyed e depois da reunião jantariam juntos.
Ricardo Larroyed era, para o alquebrado professor, uma pedra preciosa.
Acreditava que se não fosse pela amizade do dublê de acupunturista e policial
já teria desistido de tudo. Desde o acidente nunca mais praticara sequer tai
chi chuan. Sentia-se bem disposto e forte fisicamente, mas sua alma não parara
de chorar.
A
noite caíra. Emanoel Vorcaro sentiu que o tempo começava a mudar, tornando-se
mais úmido. A brisa mexia levemente as folhas dos ipês, abacateiros,
barrigudas, jamelões, mangueiras e palmeiras das imediações. Aspirou o perfume
dos jasmineiros. Ah! Era como estar ao lado de Eliana, curtindo a vida em toda
a sua plenitude. Naquela noite, haveria de ficar embriagado com Ricardo
Larroyed e haveria de produzir o melhor xarope do planeta, capaz de deixar o
útero da deusa ruiva como um botão de rosa, um berço de mênstruo desabrochando.
Deixara seu Gol no estacionamento da quadra. Alcançou-o, embarcou e saiu. Dali
a sete dias seria Natal. Como sempre, passaria a noite de Natal sozinho, com
suas recordações. Sabia que o passado não existe, como também o futuro não
existe. Um, era nostalgia e remorso; o outro, ansiedade. Rejeitava um e outro.
No mundo material, extremamente limitado, só havia agora, e nada mais.
Precisava viver apenas cada momento, e cada momento é a eternidade. Mas, se
quisesse, nem precisava pensar, não precisava pensar em nada, nem mesmo no que
fora, ou no que viria a ser, e foi o que fez. Ainda podia dominar seus
pensamentos, e não pensou mais em rosa alguma.
♦♦♦ RAY CUNHA – Escritor e Jornalista baseado em Brasília-DF, Brasil, e o mais antigo colunista do Jornal do Feio
Nenhum comentário:
Postar um comentário