Um cronista no trapiche
O trapiche velho de guerra deixou-me lembranças
inolvidáveis. Quando criança, vivi sob o mistério do lugar. Naqueles profundos
calados-d’água haveria de existir algum bicho desses que povoam aimaginação
cabocla, capaz de num bote certeiro abocanhar e levar para o fundão homem,
mulher, jovem e criança. A respiração quase me faltava ao observar os mais
taludinhos pulando do convésdo passadiço dos navios do SNAAPP, depois Enasa –
os quais o ribeirinho conhecia mesmo pelo apelido de “rápido”. Os moleques driblavam
os moços de convés e permaneciam a bordo até o barco se afastar a uma boa
distância do atracadouro; alcançando o meião, quando o comandante chamava a
marcha de viagem, era o momento escolhido para se lançarem ao rio: um, dois,
três e quantos mais. Será que vão boiar ou a piraíba, a cobra-grande ou vá lá o
que seja vai devorá-los nas profundezas. Emergiam, mas meu coração continuava
disparado. Pelas minhas contas, às vezes um, dois, ou mais faltavam, os que
resolviam nadar para debaixo do tablado. E agora, foram comidos ou não? O jeito
era aguardar as notícias. Havia sempre alguém comentando que um menino
mergulhou naquelas águas e nunca mais voltou, mas não sei se era tão somente
conversa de mãe apavorada.
Interessante é que não percebemos a mudança da chamada
faixa etária. Descubro-me, de repente, entre os intrépidos desafiantes do
perigo, embora sem a mesma coragem. O máximo que minha rebeldia abonava era
brincar de “homem-rã” até onde fosse possível ver a areia branquíssima do fundo
de um Rio Tapajós ainda sem mercúrio e sem a lama de seus afluentes de
cabeceira: Teles Pires, Juruena, Bom Jardim, Cabitutu, Crepuri, Cururu, Pacu,
Rato, Tropas, cujos barrancos foram detonados pelos bicos-jato da garimpagem.
Não notei também que pulei a adolescência e no Dia
de Todos os Santos, aos exatos 17 anos de idade, apresentava-me no ponto das
partidas e chegadas para o meu primeiro dia de trabalhoformal.
Levado pelo seu Leopoldo (Leopoldino) Ramos da
Cruz Neto, tornava-me naquele dia santificado membro do Sindicato dos
Conferentes e Consertadores de Cargas dos Portos do Pará e Território Federal
do Amapá. Não era pouca coisa não. Por isso mesmo, para a admissão, fui
submetido a uma prova: descrever a frente de Santarém em duas laudas
manuscritas. Deveria não ter passado no teste posto que troquei a frente pela
costa. Culpa do maestro Isoca que inventou de eternizar a“Ponta-Negra”.
Voltando ao assunto. O teste foi obra de Daniel
Camara (assim mesmo, sem o sinal diacrítico, embora fosse pronunciado com o
acento), presidente do Sindicato e uma espécie de correspondente da então
poderosa Folha do Norte.
O conferente-jornalista-cronista além de enviar
notas e crônicas para o velho jornal de Belém gostava de fazer troça às
pessoas, principalmente às quais valesse demonstrar superioridade. A preferida
era o professor Nicolino Campos, que invariavelmente descia todos os dias pela
15 de Agosto, passando em frente a sede do sindicato, casa que servia também de
residência à família do presidente. Camara buscava em algum almanaque curiosidades
da língua portuguesa e sapecava em cima do professor. Ai dele que não tivesse a
resposta correta para aquilo que hoje chamamos de pegadinha. Serviria de motivo
de riso por alguns dias.
Nenhuma dessas brincadeiras sem sabor algum me
ensinou algo importante sobre a língua-pátria. Mas recordo-me de uma crônica,
ou melhor, do título que era alardeado como um grande achado: “As Três e a Quarta Sepulturas”. A frase
impregnou-me os neurônios de tal forma que nunca a esqueci.
Melhor assim.
A iluminação do ano seguinte à vilania da qual foi
vítima o povo mocorongo naquele setembro negro de 1968, quando soldados da
Polícia Militar do Pará, cumprindo determinação do coronel governador, mataram
Rui Pinto, Cujubinha, Banana e feriram gravemente o Brigadeiro Veloso, foi
otema da crônica. O texto expressava com veemência e indignação a ausência de
qualquer reverência às vítimas do massacre sepultadas em Santarém.
Diferentemente, o Brigadeiro Haroldo Coimbra Veloso fora lembrado por muitos em
sua Cripta dos Aviadores, no Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro.
Daniel Camara distribuiu aos amigos exemplares da edição da Folha do Norte em
que o texto fora publicado, e por muitos dias ouvi como uma interminável
ladainha a repetição do título da crônica: “As três e a quarta Sepulturas”.
De tanto ouvir falar, a indignação do cronista
passou a ser minha também; eu que houvera pegado numa arma para responder ao
ataque infame e só não fui para o palco da covardia porque a família com
severidade me impediu. Mas nada pode se comparar ao desalento que senti ao ver,
alguns poucos anos depois, amargando um chá de banco na antessala do coronel,
agora deputado federal, as duas principais personagens santarenas daquele
inominável dia 20 de setembro de 1968.
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♦ Compilado do Estado do Tapajós on line
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