M A C A P Á
Foto: Gaio Gato
Macapá, dividida pela Linha Imaginária do
Equador e quase na boca do rio
Amazonas, o maior do planeta, na Amazônia Caribenha. A
cidade do meio do mundo, porta de entrada para o Caribe, comemora 257 anos. A foto, de Caio Gato, é um flagrante de tromba d'água no inverno amazônico de 2014
BRASÍLIA – Macapá é uma miragem que vai se materializando na medida em que o
sol, gigantesca bola de ouro do outro lado do Canal do Norte, na cabeceira da
Linha Imaginária do Equador, começa a se levantar, e, de repente, como mulher
que emerge do mergulho, respingando água, mostra-se toda nua. À beira-rio, e no
início da BR-156, sente-se o tumor latejando. A população avança natureza
adentro, sem contar com nenhum metro de rede de esgoto. Macapá é uma cidade
ribeirinha emblemática. Seu nome vem do tupi macapaba, lugar de muitas
bacabeiras, palmeira nativa da região, de fruto, a bacaba, gerador de suco
delicioso, quase tanto quanto açaí, este, de grande significado para os
amapaenses, que já foram paraenses, pois o estado do Amapá é um naco da antiga
Província do Grão-Pará, e os parauaras são os mais ávidos tomadores de açaí da
face da Terra.
Assaltados pela sede mais desmedida
de ambição, os espanhóis, que instalaram no continente ibero-americano uma
aristocracia escravocrata e medieval, que os portugueses potencializaram até a
loucura, sondaram o setentrião da Amazônia Azul antes de Pedro Álvares Cabral,
de modo que em 1544, Carlos V de Espanha sentiu-se à vontade para chamar
aquelas paragens de Adelantado de Nueva Andaluzia, ao conceder a província ao
navegador espanhol Francisco de Orellana, que, cego pela ambição, vagou pela
Amazônia em busca da cidade de ouro, El Dorado, mas, como seus colegas, foi
vencido pelo Inferno Verde.
Em 1738, colonos portugueses
instalaram, ali, um destacamento militar, a Praça São Sebastião, atual Veiga
Cabral, onde, em 4 de fevereiro de 1758, foi levantado o Pelourinho, um dos
símbolos do implacável poder lusitano, na presença do capitão-general do Estado
do Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, fundando-se a Vila de São
José de Macapá e selando-se o fim da nação que dominava aquela beirada de rio, o
povo tucuju, do tupi tucumã, também palmeira natural da Amazônia, de frutos
doces e oleosos, matéria-prima para vinho, licor e mingau.
Em 1764, Portugal deu uma
demonstração do seu poderio na Amazônia, iniciando a construção de projeto do
engenheiro italiano Henrique Antônio Gallúcio, a Fortaleza de São José de
Macapá, concluída 18 anos depois, no ano de 1782, alicerçando a Vila de São
José de Macapá, da qual se tornou baluarte e cartão postal, encravado na frente
do Canal do Norte, a cerca de 200 quilômetros da boca do Amazonas, quando o rio
despeja pelo menos 200 mil metros cúbicos de água túrbida de húmus no oceano
Atlântico, por segundo, o suficiente para encher 8,6 baías de Guanabara em um
dia; em média, verte 400 mil metros cúbicos de água por segundo, chegando,
portanto, a derramar 600 mil metros cúbicos de água por segundo no mar, além de
espantosos 3 milhões de toneladas de sedimento, por dia, 1,095 bilhão de
toneladas por ano. O resultado disso é que a costa do Amapá está crescendo.
A boca do rio, escancarando-se do
arquipélago do Marajó, no Pará, até a costa do Amapá, mede 240 quilômetros, e
sua água túrgida penetra 320 quilômetros no mar, atingindo o Caribe nas cheias
e, juntamente com outros gigantes do Pará e Amapá, fertiliza o Atlântico com
cerca de 20% da água doce de superfície da Terra, contribuindo para que a costa
do Amapá e do Pará sejam as mais ricas do planeta em todo tipo de criatura do
mar, especialmente a costa amapaense, pois o húmus despejado pelo Mar Doce no
Atlântico torna a Amazônia Azul setentrional uma explosão de vida marinha, seu
ponto mais esplendoroso, no Brasil mais mal guardado pela Marinha de Guerra e
menos estudado pela academia.
Enquanto os tucujus se tornaram
símbolo de um tempo antigo, espanhóis e portugueses legaram os tempos heroicos,
e persistentes, de colonos e colonizados, o drama que perpassa a Ibero-América,
a tragédia da Amazônia. A construção da Fortaleza por meio do trabalho escravo
de negros e índios foi o cadinho em que se forjou a etnia macapaense. Os
portugueses cruzaram com os africanos e geraram mulatos, e fornicaram com os
índios, formando uma população de mamelucos; os africanos fundaram o bairro do
Laguinho, misturaram-se com os índios e legaram cafuzos; e mulatos, cafuzos e
mamelucos misturaram-se, fechando o círculo, numa diversidade étnica viva nas
ruas de Macapá, nas nuanças de peles que vão do alabastro ao ébano, passando
pelo bronze e jambo maduro, e todos unidos pelo sotaque caboco, a fusão do
português falado em Lisboa, doces palavras tupis, línguas africanas, patoá das
Guianas, tudo triturado em corruptela, isso e a seminudez dos habitantes do
Trópico Úmido, que, antes de ser sensual, é inocente, como o olhar da mulher
amazônida, espilantol se espalhando nas papilas gustativas da alma, o embalar
de rede no rio da tarde, o choro dos jasmineiros noturnos.
Ao olhar superficial do leigo, que acidentalmente caiu na Amazônia, a
Hileia lhe parecerá o Inferno Verde, onde encurtará sua vida, devorado por
microrganismos e insetos, ou torrado pelo sol equatorial, ou afogado pela água,
não do Mar Doce, mas em estado gasoso, nos 100% da umidade relativa do ar.
Assim, o incauto será corrido daquelas paragens, grávido da antiga ideia dos
colonos – agora, os governos que se sucedem em Brasília, paulistanos,
americanos, japoneses e os europeus de sempre –, de que a Amazônia só serve
para três fins: construção de hidrelétricas; extração de madeira e mineral; e
reserva de caça, pesca e escravos, especialmente para o pugilato do sexo, além
da crença de que os rios são esgotos naturais. Esse pensamento assenta-se na
crença de que os colonos são deuses e os colonizados, seres inferiores, que
existem para servir aos sangues-azuis; razão pela qual o Trópico Úmido ferve no
ventre das trevas. Já ao escrutínio do iniciado, desvanecem-se as brumas da
cegueira e começa-se a enxergar com o terceiro olho; então, surge o paraíso no
coração das trevas.
______________
•• RAY CUNHA – Escritor e Jornalista baseado em Brasília-DF, Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário