CONTO/Luziânia
Conto
novo: escrevi-o em março passado. Era para participar de um concurso, mas achei
que não tem peso para chegar ao cinturão e trabalhei outra história
curta, a qual acredito reunir mais chances de sucesso. Assim,
torno público este novo conto, o qual se chama Luziânia, a maior das
pequenas cidades do Entorno do Distrito Federal, uma das regiões mais violentas
do planeta.
De dia, as margens
da BR-040, entre Brasília e Luziânia (GO), era uma sucessão de cerrado pegando
fogo e povoados imersos na fumaça e na poeira, num sono antigo, que, à noite,
mergulhava no horror imposto pelos barões locais da droga. A sensação térmica
era de 40 graus centígrados e a umidade relativa do ar, de 4%. Quase não se
conseguia respirar. A temperatura era de 21 graus dentro do carro, uma
caminhonete negra, Chevrolet, que cortava o distrito de Jardim Ingá rumo a
Luziânia, sede do município, uma dessas cidadezinhas perdidas à sombra da
miragem de Brasília. Iam dois homens no carro.
O
caso é o seguinte: ele já deve ter uma fortuna de R$ 1 bilhão. Quer se
eleger... e será eleito – disse o que ia ao volante. Era pequeno e pardo, tinha
o nariz quebrado e seus olhos brilhavam como os de Rafael Leónidas Trujillo
Molina, o Bode.
O
outro sujeito lembrava o Jeca Tatu de Mazzaropi, e estava sempre com as mãos
suadas; parecia que estava morrendo, o tempo todo. Sentia raiva, e medo.
Entraram pelo Parque Alvorada, subúrbio de Luziânia. A caminhonete estava
encardida como os pombos que disputam restos na Pastelaria Viçosa, na
Rodoviária do Plano Piloto, em Brasília.
-
Temos que ter cuidado com essa gente. São mafiosos – disse Jeca Tatu. Sua voz
era todinha a do papagaio do programa da Ana Maria Braga, da TV Globo.
-
Ele quer se eleger e podemos fazer a campanha dele pelo jornal e pela rádio -
disse o do volante, seco e rijo como um peso pena. - Estavam passando pela
Igreja do Rosário, em direção ao centro da cidade.
Quando
chegaram ao restaurante, o tipo com voz de papagaio estava com a testa
porejada, apesar da secura do tempo. A tarde já ia pelo meio e só havia meia
dúzia de pessoas na casa, contando com eles. O pugilista foi falar com o dono
do estabelecimento, de quem era conhecido, retornando pouco depois para a mesa.
O garçom já havia servido água tônica com gelo e limão.
-
Ele não vai demorar – disse o pugilista. – E a Mara? – perguntou ao homem com
voz de papagaio.
-
Mara? – respondeu o outro, estupidamente. – Estou puto com ela! – disse,
enfezado.
O
pugilista sabia alguma coisa.
-
É inútil brigar com as mulheres – disse. – Nem Freud conseguiu entendê-las.
Aliás, elas mesmas não se entendem. Para mantê-las nossas aliadas tudo o que
temos a fazer é tratá-las como crianças, o tempo todo, excitá-las, comprar-lhes
presentes caros, essas coisas.
-
Acho que a melhor maneira de lidarmos com elas é fazendo-as sentir o peso da
nossa mão – disse Jeca Tatu.
-
Não penso assim. Obtive o esclarecimento definitivo sobre as mulheres vendo um
documentário da BBC sobre répteis – disse o pugilista.
-
Répteis? – perguntou Jeca, sem acreditar naquela conversa. Ambos eram velhos
amigos da faculdade de direito, e Bode sempre fora acometido por aquelas
conversas exóticas.
-
Sim, répteis. Alguns lagartos, não me lembro mais se do norte da África, ou de
alguma ilha do Mediterrâneo, procuram pedras para se aquecerem. Aqueles que
conseguem as maiores têm que enfrentar rivais para não perder a pedra. Os
vitoriosos ficam lá, ao sol, e de repente atraem um harém, fêmeas que vão se
oferecer para ele. Com as mulheres é a mesma coisa, se você tiver a maior pedra
ao sol elas se oferecem a você. No nosso caso, mamíferos racionais, a pedra
pode ser um diamante. – O pugilista disse isso e ficou olhando para o sujeito
com aspecto de capiau, embora trajasse roupas caras.
-
Continuo achando que aquela vaca pensa que sou um touro – disse o tipo com
jeito de caipira. – Para certas putas só chumbo quente mesmo.
-
Você lhe dá flores, leva-a para dançar, faz carinho nela, quero dizer, antes de
meter essa trolha nela? – o pugilista perguntou. Parecia conhecer muito bem seu
parceiro para manter uma conversa dessas.
-
Mulher gosta é de levar a seco – disse o outro, pedindo mais água tônica.
-
Assim ela não sente prazer algum. A menos que você goste de estuprar. Isso é
bom. Se você consegue se excitar num estupro, terá nervos para se manter sereno
enquanto eu converso com o nosso mafioso. Ele quer se eleger deputado federal
para poder lavar a grana que recolhe com o jogo de azar, lenocínio e droga –
disse o pugilista. – De modo que o caso da Mara não deve turvar seu raciocínio,
amigo.
O
outro olhou para o pugilista.
-
A Mara tem um amante. Um traficante. O sujeito me mandou um bilhete ameaçando
matar a Samanta se eu não liberar a Mara – disse o capiau, com a voz mais
parecida do que nunca com a do papagaio da Ana Maria Braga.
-
Matar a Samanta? – quase gritou o outro. – Samanta era a esposa do capiau.
O
pugilista sentiu que o papagaio estava se cagando de medo; ia dizer alguma
coisa quando o candidato chegou. Era comerciante e fazendeiro e falava como o
Cebolinha, do Maurício de Souza.
-
Vou plecisar do jornal e da ládio de vocês – disse.
-
Estamos em julho. Com R$ 1 milhão, elegemos você. A campanha fica toda por
nossa conta: jornal, rádio e trio elétrico – disse o pugilista.
-
E TV? – Cebolinha perguntou.
-
Com TV aumenta o preço; vai para R$ 1,3 milhão – volveu o pugilista. – R$ 440
mil agora, R$ 430 mil em agosto e R$ 430 mil em setembro, se você estiver bem
nas pesquisas.
-
Então posso gastal R$ 870 mil sem galantia de que estalei bem em setemblo? –
Cebolinha perguntou. Os cabelos dele lembravam também os de Cebolinha.
-
Com o curral eleitoral que o senhor comprou no Instituto de Ação Social não há
erro – disse o pugilista.
Papagaio
não falou durante o tempo todo. Após 15 minutos de conversa direta e franca
Cebolinha apertou a mão dos dois e saiu com os seguranças, que estavam à mesa
mais próxima da saída. Nem bem Cebolinha saiu e dois sujeitos entraram no
restaurante e anunciaram o assalto. Nessas alturas só estavam no recinto o
pugilista, o papagaio e um casal. O mais alto dos dois assaltantes foi ao caixa
e o limpou; o outro, baixinho, ficou à porta, de 38 na mão. O pugilista e o papagaio
ficaram olhando para a mesa. Papagaio porejava e o pugilista podia sentir o
fedor que ele exalava; lembrava o odor de flores mortas. O assaltante da porta
estava visivelmente nervoso, olhando para a saída e para seu comparsa. O casal,
que estivera conversando animadamente, virou uma estátua. Os olhos da moça
estavam esbugalhados. O telefone celular do companheiro dela tocou, e ficou
tocando até silenciar. O sujeito alto saiu de detrás do balcão com um saco
cheio de dinheiro e se dirigiu para a porta. Chegou à porta e retornou, até à
mesa onde estavam o pugilista e o capiau. Atirou sem mirar. O projétil da
pistola 45 pegou Zeca Tatu no meio da testa. Os assaltante sumiram. A cabeça de
Zeca Tatu tombou para trás e seus braços caíram ao lado da cadeira. Parecia que
ele estava fazendo a sesta.
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Brasília, 25 de
março de 2012
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