“O
passado é feito do que há de melhor”
BRASÍLIA – Em
1975, em Manaus, o jornalista Isaias Oliveira me disse algo que remoí nos 25
anos seguintes: “O passado é feito do que há de melhor”. Tínhamos, então, 21
anos de idade, e Isaias Oliveira, ex guia de turistas na selva, começava, como
eu, a carreira jornalística, ambos sem curso superior. Ele, contudo, já me
impressionava, sobretudo pela sua serenidade, e pela cultura. A personagem
central do meu conto Inferno Verde, o jornalista que duela
com o psicopata Cara de Catarro, foi batizado de Isaias Oliveira, e tem os
olhos grandes e expressivos do seu homônimo da vida real.
Criei, e utilizei em mais de um
trabalho de ficção, uma frase que equaciona o que Isaias Oliveira me dissera
décadas atrás: “O agora e o agora, o momento mesmo da vida”, no sentido de que
não existe passado, nem futuro, mas somente a intensidade do agora. O passado e
o futuro são vidas paralelas.
Mas se não existe, por que Isaias
Oliveira teria me dito que “o passado é feito do que há de melhor?” E aquela zona
escura da nossa personalidade, que não confessamos nem para nós mesmos? E os
crimes que cometemos, inconfessáveis, e que somente nossa consciência pode
punir, por meio da angústia, às vezes tão aguda que sangra a alma? Como fugir
dessa zona sombria, se ela está alojada no subconsciente, indelével? Podemos
até esquecer esse inferno, mas, sempre que a oportunidade se apresenta, ele se
manifesta.
Minha esposa, Josiane, preletora da
Seicho-no-Ie e psicóloga, vive me dizendo: “Tudo o que realizamos deve ser feito
como a coisa mais importante da nossa vida, com amor, para que beneficie o mais
amplamente possível o maior número possível de pessoas”. Ontem, li em voz alta
o preceito do dia 28 do calendário de 2013 da Seicho-no-Ie, que diz:
“Concentre-se no agora e viva plenamente. Você nasceu neste mundo para viver
plenamente cada momento de sua vida. Aprimorou sua alma valorizando o passado e
visualizando um futuro radioso. Concentre os esforços naquilo que deve ser
feito agora. Só assim abrir-se-á a porta de seu futuro. É essencial cumprir bem
a missão que lhe cabe no momento” (Seicho Taniguchi). Minha filha, Iasmim, que
me ouvia, disse: “Pai, o passado nós vivificamos; o presente, vivemos; o
futuro, a gente constrói”.
Com efeito, o passado não existe,
mesmo. Nostalgia, voltar ao passado, tentar resgatá-lo, estacionar nele, é vida
paralela; e voltar ao passado para castigar-nos é mergulhar na angústia,
agonizar, morrer. Se temos algum ajuste com o passado, só precisamos
arrepender-nos, ou seja, não cometer mais o que nos angustia tanto, e aceitar o
resultado da colheita, por mais terrível que seja. De real, naquilo que já foi,
só há os antepassados, as raízes, o riso mais cristalino de quando éramos
criança. E o futuro, será sempre o reflexo do agora e o agora.
Já faz tempo que vivo cada dia. Ainda
tenho muitos livros para escrever, mas não estou preocupado com isso. Quero ver
telas novas de Olivar Cunha e ler o livro de contos de Joy Edson, quero sentir crianças rindo e
rosas que não se importam em se desnudarem na minha presença. O momento mesmo
da vida é o azul mais azul, intenso como a nudez das rosas vermelhas à luz de
manhãs ensolaradas, como o primeiro beijo, e gemidos no silêncio da madrugada,
ao mergulharmos no abismo da mulher amada, prenhe de mistério.
•••••••
♦ RAY CUNHA – Escritor e Jornalista baseado em Brasília-DF, Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário