Sempre me perco em ti, e sempre de
propósito

A Seringueira que intercepta o muro do Colégio
Amapaense, na Rua Eliezer Levy, é personagem no meu
romance A CASA AMARELA, que será publicado em
reve na Amazon.com e no Clube de Autores
Amapaense, na Rua Eliezer Levy, é personagem no meu
romance A CASA AMARELA, que será publicado em
reve na Amazon.com e no Clube de Autores
A
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s cidades são como as mulheres. De
manhã, douram-se ao sol, como as rosas, e, à tarde, se transformam em um rio
azul. À noite, se perdem na luz. Da mesma forma que as mulheres, nas cidades
latejam segredos, só desvendados pelos que sabem mergulhar no abismo da
primavera. Quanto mais as amamos, mais belas ficam, e mais misteriosas. E, como
as mulheres, nunca são nossas. Não podemos ser donos de uma cidade, da mesma
forma que é impossível nos apossarmos de uma mulher, porque as mulheres serão
sempre livres e misteriosas. A cada partida, fica implícito o encontro marcado,
e as chegadas são regadas de risos, de luz, e perdão.
Amo várias cidades, e elas se
entregam a mim sem reservas. Belém tem feitiço de rosas colombianas sangrando
no azul do mar, deixando um rastro de Chanel 5, gim e perfume de mulher absorta
ao toucador. Manaus evoca o cheiro de mulher, tão intenso que causa vertigem, a
ponto de sentirmos os movimentos da Terra no espaço, como música de Mozart. O
Rio de Janeiro tem o poder de me fazer voar, cavalgando besouros furta-cores
num mar transparente sem fim. Há, ainda, outras cidades, a quem eu seduzo como
o garanhão faz a corte à sua próxima vítima, com paciência, concentração total
e, sobretudo, fé. Percorro as cidades com amor. Assim é com Macapá.
Os tucujus a habitavam quando Carlos
V de Espanha a chamou, em 1544, de Adelantado de Nueva Andaluzia e a deu ao
navegador Francisco de Orellana. Em 1738, foi instalado, no cruzamento da Linha
Imaginária do Equador com o rio Amazonas, um destacamento militar, na antiga
Praça São Sebastião, atual Veiga Cabral. Em 4 de fevereiro de 1758, o
capitão-general do Estado do Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
fundou a Vila de São José de Macapá, que se debruça sobre o maior rio do mundo,
não muito distante do Atlântico. Na maré alta, o gigante avança sobre a cidade,
entre o açoite do vento e o muro de arrimo, onde estaca, recua e arremete com
mais ímpeto. Em meio à agitação, o Trapiche Eliezer Levy emerge, indiferente.
A melhor maneira de descobrir Macapá
é atravessando de barco o estuário do rio Amazonas. Quem sai do arquipélago do
Marajó e mergulha no maior rio do mundo, em direção à Linha Imaginária do
Equador, avista, de repente, a cidade, que surge como cunhantã se banhando no
rio, o vestido molhado, colado ao corpo, os cabelos espargindo água, e, nos
olhos, o mistério. É assim que gosto de pensar a cidade, e sentir seu cheiro
tórrido de jasmim nas noites mornas.
Sou teu, Macapá, porque tu me pariste
às 5 horas do dia 7 de agosto de 1954, no Hospital Geral, e de lá fui para a
Casa Amarela, ao lado do Colégio Amapaense, na Avenida Iracema Carvão Nunes com
a Rua Eliezer Levy, ao lado da Mata do Rocha, e lá passei 11 anos da minha
infância. Restou a Seringueira, que meu pai plantou, e que foi salva de ser
decepada – porque se recusou a sair do caminho do muro do Colégio Amapaense –
pelo agrônomo Luiz Façanha, que se abraçou ao seu tronco num gesto de amor. Meu
pai, João Raimundo Cunha, semeou a Seringueira, em 1952, ano do nascimento do
meu irmão, o pintor genial Olivar Cunha. Macapá, para mim, é isso, e é tanta
coisa.
Macapá é como a mulher que desejamos
por muito tempo e que inesperadamente está diante de nós, nua, mas só acredito
que estou nela quando a cidade me engole. Entro no santuário despido de todas
as feridas, e mergulho num mundo prenhe de jasmineiros que choram nas noites
tórridas, merengue, mulheres que recendem a maresia, o embalar de uma rede no
rio da tarde, tacacá, Cerpinha, e lhe oferto rosas, pedras preciosas, luz, toda
a minha riqueza. É nesse mergulho que sempre me perco em ti, e sempre de
propósito, numa vertigem da qual só me recupero em Brasília, dias depois.
As viagens que fazemos no coração são
vertiginosas demais. A casa da minha infância, cada palavra que garimpei em
madrugadas eternas, cada gota de álcool com que encharquei meus nervos, cada
mulher que amei nos meus trêmulos primeiros versos, cada busca do éter nas
noites alagadas de aguardente, o jardim da casa da Leila, no Igarapé das
Mulheres, o Elesbão, a casa da Myrta Graciete, a casa do poeta Isnard Brandão Lima Filho, na Rua Mário
Cruz, o Macapá Hotel, o Trapiche Eliezer Levy, pulsam para sempre no meu
coração, que enterrei na Rua Iracema Carvão Nunes.

♦♦♦ RAY CUNHA – Escritor e Jornalista baseado em Brasília-DF, Brasil, é o mais antigo colunista do Jornal do Feio