Negócios no reservado do restaurante
A barriga do deputado era de égua prenha. Ele devorava uma terrina de calderada de frutos do mar com pirão e arroz. Era uma terrina enorme e havia comida para quatro pessoas. O empresário que conversava com o deputado não estava interessado em comer. Era baixinho e um sorriso quase imperceptível não lhe saía da boca. Trajava calças justas de brim, o que realçava suas pernas tortas para dentro.
- O caso é o seguinte: você vai receber R$ 5 milhões; 40% é dele; 30% é para dividir com o pessoal; e 30% é seu – disse o deputado, entre uma bocada e outra, castigando o idioma.
O sorriso do empresário ficou mais ameaçador.
- Só R$ 1,5 milhão? – assustou-se. – É muito pouco!
- Não preocupa; em maio, daqui a um mês e meio, vamos firmar outro contrato de mais R$ 5 milhões, e aí você perfaz R$ 3 milhões, e daqui pro final do ano vamos circular mais de R$ 100 milhões – disse o deputado, num tom apaziguador, naquele linguajar em que pronome pessoal do caso oblíquo não entra.
O reservado era fresco, arejado por um corredor de vento entre as frondes das árvores, principalmente na parte de trás do restaurante, numa das ruas comerciais da Asa Sul. O dono era um sargento, torturador na ditadura militar e que trabalhara durante anos nos arquivos do antigo SNI (Serviço Nacional de Informações).
- Você trouxe os R$ 30 mil? – disse o empresário.
- Está aqui – disse o deputado, aspirando a segunda sobremesa Romeu e Julieta e apontando com os olhos para sua maleta preta, ignorando a flexão do verbo com o sujeito oculto. – Ué! você não trouxe maleta, onde vai carregar esse dinheiro? Na cueca?
“Tarado” – pensou o empresário. Ele sabia que o deputado costumava colocar duas assessoras no seu carro e saía em comboio, com seguranças à frente e atrás em outros veículos. Uma das assessoras dirigia o automóvel do deputado enquanto ele papava a outra no banco traseiro. Depois, a que fora papada dirigia enquanto a outra era trabalhada. Ele fazia isso à noite, mas ainda cedo. Ficava excitadíssimo.
- Há notas de R$ 100, mas também há notas de R$ 50 – disse o deputado, engolindo o quarto Romeu e Julieta. – Está bem, vou te dar essa maleta – disse, ignorante do paralelismo do pronome pessoal do caso reto.
- Depois te devolvo – disse o empresário, que também só pensava em dinheiro.
- Não, não quero. Pode ficar com ela. Tudo bem! – retrucou o deputado, arrotando e acomodando a barriga de égua prenha.
Na parede oposta havia um óleo sobre tela de três metros de largura por dois de altura. Ele retratava um câmera filmando. Era um desses trabalhos que os críticos chamam de hiper-realismo. O olho da câmera se moveu.
O deputado detestava aquele quadro.
***********************************
♦ Ray Cunha é jornalista, editor do portal www.conexaocplp.com.br, e escritor, autor de O Casulo Exposto (LGE Editora, Brasília, 153 páginas, R$ 28), à venda nos sites da Saraiva, Leitura e Cultura
A barriga do deputado era de égua prenha. Ele devorava uma terrina de calderada de frutos do mar com pirão e arroz. Era uma terrina enorme e havia comida para quatro pessoas. O empresário que conversava com o deputado não estava interessado em comer. Era baixinho e um sorriso quase imperceptível não lhe saía da boca. Trajava calças justas de brim, o que realçava suas pernas tortas para dentro.
- O caso é o seguinte: você vai receber R$ 5 milhões; 40% é dele; 30% é para dividir com o pessoal; e 30% é seu – disse o deputado, entre uma bocada e outra, castigando o idioma.
O sorriso do empresário ficou mais ameaçador.
- Só R$ 1,5 milhão? – assustou-se. – É muito pouco!
- Não preocupa; em maio, daqui a um mês e meio, vamos firmar outro contrato de mais R$ 5 milhões, e aí você perfaz R$ 3 milhões, e daqui pro final do ano vamos circular mais de R$ 100 milhões – disse o deputado, num tom apaziguador, naquele linguajar em que pronome pessoal do caso oblíquo não entra.
O reservado era fresco, arejado por um corredor de vento entre as frondes das árvores, principalmente na parte de trás do restaurante, numa das ruas comerciais da Asa Sul. O dono era um sargento, torturador na ditadura militar e que trabalhara durante anos nos arquivos do antigo SNI (Serviço Nacional de Informações).
- Você trouxe os R$ 30 mil? – disse o empresário.
- Está aqui – disse o deputado, aspirando a segunda sobremesa Romeu e Julieta e apontando com os olhos para sua maleta preta, ignorando a flexão do verbo com o sujeito oculto. – Ué! você não trouxe maleta, onde vai carregar esse dinheiro? Na cueca?
“Tarado” – pensou o empresário. Ele sabia que o deputado costumava colocar duas assessoras no seu carro e saía em comboio, com seguranças à frente e atrás em outros veículos. Uma das assessoras dirigia o automóvel do deputado enquanto ele papava a outra no banco traseiro. Depois, a que fora papada dirigia enquanto a outra era trabalhada. Ele fazia isso à noite, mas ainda cedo. Ficava excitadíssimo.
- Há notas de R$ 100, mas também há notas de R$ 50 – disse o deputado, engolindo o quarto Romeu e Julieta. – Está bem, vou te dar essa maleta – disse, ignorante do paralelismo do pronome pessoal do caso reto.
- Depois te devolvo – disse o empresário, que também só pensava em dinheiro.
- Não, não quero. Pode ficar com ela. Tudo bem! – retrucou o deputado, arrotando e acomodando a barriga de égua prenha.
Na parede oposta havia um óleo sobre tela de três metros de largura por dois de altura. Ele retratava um câmera filmando. Era um desses trabalhos que os críticos chamam de hiper-realismo. O olho da câmera se moveu.
O deputado detestava aquele quadro.
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♦ Ray Cunha é jornalista, editor do portal www.conexaocplp.com.br, e escritor, autor de O Casulo Exposto (LGE Editora, Brasília, 153 páginas, R$ 28), à venda nos sites da Saraiva, Leitura e Cultura
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