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7/28/2017

RAY CUNHA



A vida começa aos oitenta




O poeta Heitor de Andrade é editado pela Siglaviva


BRASÍLIA – A noite não tardaria quando Heitor Andrade e eu nos sentamos no calçadão da confeitaria Panini, na Quadra 103 do Sudoeste, segunda-feira 24. A temperatura estava agradável; acredito que fizesse 21 graus, semelhante à cabine dos jatos comerciais. Ele pediu chocolate e croissant e eu, café com leite e pão com manteiga. Heitor é um garoto de 80 anos; poeta baiano, primo de Glauber Rocha, com quem teve sua vida entrelaçada. Eu tenho praticamente 63 anos, mas sempre que nos encontramos, engatamos papo de horas, com o mesmo interesse de rapazinhos.
Fui vê-lo mais cedo, no prédio da Editora Thesaurus, no Setor Gráfico, a poucos minutos do Sudoeste, e onde o Heitor mora atualmente. Ele queria me falar do projeto no qual está empenhado: transformar um dos pavimentos do prédio da Thesaurus em centro cultural, com atividades de cinema, teatro, galeria de artes plásticas e café literário, local onde escritores de Brasília possam vender seus livros. E também queria que o examinasse.
Heitor é da estirpe de Pablo Picasso; sua energia pré-celestial, apesar de todos os excessos, ainda é exuberante. Fiz anamnese, observei-lhe a língua e os pulsos, e, basicamente, além de orientá-lo a beber dois litros de água por dia, limpei-lhe o meridiano dos pulmões e tonifiquei baço e rins. Depois, fomos caminhando à Panini.
Às 19 horas, começou a reunião de estudo da Seicho-No-Ie, no mesmo prédio da Panini; convidei o Heitor para participar da reunião e ele aceitou. Subimos. Íamos começar o estudo do primeiro volume da coleção A Verdade, de Masaharu Taniguchi. Heitor retirou-se mais cedo, pois a sessão de acupuntura começou a fazer efeito; como ele não estivesse dormindo bem, apliquei nele o ponto extra yintang, situado entre as sobrancelhas. Disse que estava começando a sentir sono, despediu-se e voltou para casa.
Natural de Salvador, o escritor é pioneiro na vida cultural e jornalística de Brasília, nos anos de 1960, os momentos heroicos da nova capital do Brasil. Agitador cultural, Heitor apresenta, na noite brasiliense, o Teatro do Imprevisto, criação sua. Nas apresentações, improvisa e dialoga com a plateia, sempre instigante. O cineasta Renato Cunha, editor de Heitor Andrade, trabalha num documentário longo sobre o poeta, com produção de Kim Andrade, primo e produtor de Glauber Rocha.

Segue texto sobre a edição comemorativa de CORPOS DE CONCRETO


Siglaviva tem a honra de trazer para o leitor a edição comemorativa de 50 anos de Corpos de Concreto, editado em 1964, às portas do golpe militar, pela Imprensa Oficial da Bahia, órgão à época sob a direção do professor Germano Machado, que aqui nos brinda com uma apresentação especialíssima. Germano Machado, além da nobre atitude de apostar num poeta iniciante, foi o responsável por salvar 100 exemplares da edição, que acabaria sendo queimada lá mesmo, no pátio da Imprensa. E foi por isso — pelo ato corajoso de um homem que, naqueles idos, havia sido equivocadamente tachado de reacionário pelos meios de comunicação — que esta edição comemorativa se torna agora possível.
Homenageamos aqui, então, não somente Heitor, mas também Germano. Após décadas sem se ver, eles se reencontraram em janeiro deste ano em Salvador, mediados pela produtora cultural e atriz Tina Tude. O reencontro — Heitor com 76 anos e Germano com 87 — reacendeu a importância de Corpos de concreto para a literatura baiana e brasileira e rememorou a conjuntura política que o tornou o primeiro livro no país a entrar para o índex da ditadura militar.
Na verdade, Heitor sofreu em sua carreira literária por um motivo apenas: por se desvencilhar tanto da direita como da esquerda, optando por uma politização fora dos eixos delimitados. Heitor sempre foi do partido da poesia, da cosmopoética, totalmente libertário e sem dogmas. E, assim, acabou por prever — não sei se utilizando as cartas do tarô — a morte da ideologia no país, uma morte que hoje é ilustrada pelo próprio panorama político. Mas e a poesia? A poesia — vale dizer —, apesar de parecer o contrário, não morreu; nunca morrerá.
Deleitem-se, então, com ela, com a poesia inaugural de Heitor Humberto de Andrade — ou, simplesmente H2A, como ele prefere ser chamado —, poesia merecidamente festejada nestes 50 anos de sua primeira publicação.
Heitor Humberto de Andrade é poeta e jornalista. Jornalista pela fome, poeta pela sede. Publicou Corpos de Concreto (1964), Sigla Viva (1970), 3x1, a matemática do poema (1978) — que, além dos dois anteriores, traz o inédito Probabilidade do jogo —, Nas grades do tempo (1994), Minha moldura é o Universo (2012) e O cão selvagem (2013). Mentor intelectual e espiritual desta editora, comandou, no final dos anos 60 e início dos 70, juntamente com o artista plástico Sami Mattar, o movimento cultural Sigla Viva, que promoveu a integração da sensibilidade humana com a artística.

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♦♦♦ RAY CUNHA – Escritor e Jornalista baseado em Brasília-DF, Brasil, é o mais antigo colunista do Jornal do Feio

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