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12/29/2013

RAY CUNHA





Mulher sob a chuva
 
O tronco da mangueira parecia excessivamente grosso, de longe, na agonia da tarde; era alguém que estava abraçada nele. Trajava-se com um vestido de seda, longo, estampado com rosas colombianas vermelhas, em pinceladas que eram puro Paul Gauguin. Seus lábios, pintados também de vermelho, poderia ser uma daquelas rosas, que alguém, de tanto beijar, sangrou.
O que mais chamava atenção na jovem que estava abraçada à mangueira eram seus olhos, negros, grandes, e misteriosos como uma mulher nua, que, de repente, emerge das águas do mar. As partes à mostra da sua pele – no estertor da tarde, quando é possível ouvir-se a tarde morrer, seguido do riso feminino da noite – flutuavam, como escultura de marfim, no anoitecer.
Seus cabelos cobriam-na como um véu, com vida própria, esvoaçando levemente à aragem, que prenunciava chuva. Ela meneou a cabeça; seu nariz era gracioso, quase teimoso. Desgrudou-se um pouco da árvore e virou-se para frente, e parte dos seios, pequenos e rijos, quase escapuliu da prisão. Voltou-se novamente e ficou na posição anterior.
Seus quadris abaulavam-se abruptamente, a partir da fina cintura, e mergulhavam no mistério. Ela estava ali já fazia algum tempo, recarregando o que chamava de Qi, que quer dizer, em mandarim, algo como energia. Ela era jovem. Tinha vinte e poucos anos, mas continha toda a experiência do mar, por isso seu olhar era tão intenso, e inacessível, e os poetas, ao se sentirem atraídos por aquele olhar, sentiam a vertigem dos primeiros beijos, sabedores de que se tratava apenas de delírio.
Fora casada com um aspirante cadete da Academia Militar das Agulhas Negras, mas aquele tipo de mulher, completamente linda, por dentro e por fora, como uma rosa nua, só pode ser feliz com um mágico poderoso, que a leve ao cume do Pico da Neblina.

– Ava! – ouviu-se. Alguém, uma mulher, a chamava. Ela não se moveu. A mangueira era grande, como as que povoam o centro de Belém do Pará. – Ava! – gritaram de novo, e a voz perdeu-se no anoitecer.

Fora um duro dia de trabalho, e no fim do dia atendera um vampiro. Ava não sabia que se tratava de um vampiro, pois na sua mente só havia jardins, muitos jardins, inúmeros jardins. Quando ela ampliou os olhos do velho, sob a lente – um velho acabado, murcho como maracujá seco –, identificou uma ventosa chupando luz, e sentiu-se tonta.
Os vampiros, na verdade, não são como o de Bram Stocker; são chupadores de Qi, de luz, e quando encontram uma jovem lindíssima, procuram sugar desesperadamente sua energia, tanto que vão embora lentos, como carapanãs após a bacanal. Por isso Ava estava ali, abraçada à mangueira. Abraçava-se sempre a uma árvore quando sentia-se exaurida.

– Ava Nogueira! – gritaram de novo, agora com sobrenome.

Já era noite quando a chuva engrossou; então, Ava desgrudou-se do tronco da mangueira e correu para a chuva. Logo seu vestido ficou totalmente molhado, e suas curvas, curvas que somente a música pode fazer, revelaram-se em toda a sua oceânica beleza.
Ouviu-se trovejar, e quando relâmpagos estalaram Ava já estava na varanda da casa, abrigada numa felpuda toalha, alva como sua pele, que sua mãe lhe levara. E o Lago Sul se encolheu sob o dilúvio.

    


 RAY CUNHA – Escritor e Jornalista baseado em Brasília-DF, Brasil

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