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1/11/2014

RAY CUNHA



BELÉM, MEU AMOR

A noite mais azul é quando
Assassinos me perseguem, derroto-os
E durmo com a princesa.
Isto só acontece nas noites tão azuis
Que um Boeing 777 ferem-nas
E sangue verte sobre as rosas,
Que o acme da princesa
Transforma em rosas colombianas.
A noite mais azul é tórrida e os jasmineiros choram,
O mundo recende a maresia
E a gordura do meu corpo
Volta a ser rija como os punhos de Muhammad Ali
Quando ele acabou com George Foreman, no Zaire.
Transformo-me em luz
Na noite excessivamente azul


Vivi um mergulho em Belém do Pará, transitando desde o ventre dos seus palácios aos lixões. Casei-me e exilei-me do lar; trabalhei ao lado dos melhores jornalistas da cidade e caí na clandestinidade do desemprego; fartei-me da culinária mais inacreditavelmente deliciosa do planeta e forjei o espartano que há em mim durante um período de fome; compartilhei camas perfumadas e percorri labirintos femininos intermináveis, mas também escorreguei no negro limo da fossa. Conheço, pois, alguns humores desta península que avança na baía de Guajará como um navio iluminado, e minha amante.

Amo todas as cidades nas quais já vivi, e até Brasília, onde moro, pois não se pode viver numa cidade sem a amar; não por muito tempo. E se as amamos, o reencontro provoca o cataclismo do primeiro beijo, sacodem-nos, lançam-nos no espaço, como nos sonhos, que, às vezes, povoam minhas noites, como se estivesse correndo numa planície de zínias e rosas, cortada pelo maior rio do mundo e desaguando na noite, prenhe de jasmineiros que choram perfume. As cidades que amamos evocam amores, madrugadas, papel em branco, álcool, imortalidade.

Namorei carnalmente, Macapá, minha cidade natal, durante os primeiros 17 anos da minha existência, até que um dia peguei o rio e a estrada e rolei para Copacabana. Nosso namoro continua firme, mas agora só no coração. Também amo o Rio de Janeiro, por quem fui seduzido para sempre. Manaus é a mesma coisa, e em cada cidade a vida se multiplica infinitamente. Como em Brasília, onde nasceu Iasmim, a princesinha que encanta todos os dias da minha vida. Mas Belém emerge do rio como mulher nua, que deixa um rastro de maresia, Chanel 5, Dom Pérignon, safra de 1954, e rosas vermelhas. Tento alcançá-la, temeroso de perdê-la. Porém, ela se volta e pronuncia meu nome. Sua voz é como o pulsar da música de Mozart. Alcanço-a, pego-a pelo cogote e a beijo, e sinto o sabor de acme.

Nem os ratos – que se dedicam a te assaltar, a te depredar, a te estuprar, que te mordem os seios – conspurcam tua beleza, nem reduzem tua eternidade, desde 12 de janeiro de 1616, quando lusitanos, comandados por Francisco Caldeira Castelo Branco, desembarcaram numa enseada na foz do rio Guamá e começaram a construir uma fortaleza, o Forte do Presépio, em torno do qual a cidade foi emergindo, e a ela chamaram de Santa Maria de Belém.

Os tupinambás não deram descanso aos invasores. Mas os portugueses dominavam armas de fogo, a Igreja e doenças letais. E em 1626, assumiu o comando Bento Maciel Parente. Os colonizadores eram brutais, mas pareciam gentis diante da loucura de Bento Maciel Parente; ele que mandava amarrar os membros de tupinambás capturados, em cavalos ou canoas, até serem rasgados, vivos. Estima-se que pelo menos 2 milhões de índios foram assassinados na Amazônia, escravizados em nome de Jesus Cristo, atingidos por doenças europeias, degolados, esquartejados ou fuzilados.

No começo do século 20, a borracha tornou Belém a cidade mais rica do país. Em 1910, os ingleses começaram a produzir látex no sudeste asiático, causando a débâcle da borracha na Amazônia. Aí começou o declínio de Belém. Hoje, é uma cidade sucateada, inchada, violenta, infestada de bandoleiros e ratazanas, as ruas emporcalhadas de esgoto escorrendo no meio-fio, cidadela corrompida, refém da corrupção, letal como câncer metastático.

Mesmo assim, Belém é como as mangueiras de dezembro, que se curvam prenhes de frutos, doces como seios de mulher na rede. É assim que ela vive no meu coração. Quando chegamos ao amanhecer, pela baía do Guajará, nós, que a amamos, vemo-la se despir, aos poucos, da névoa, até emergir, de repente, salpicando água, nuazinha; se chegamos de avião e é noite, as luzes na península, como miríade na noite que desaba sobre a baía, anunciam-se como óvnis, até pousarmos no bolsão de sol noturno de Val-de-Cães. Subitamente, os gigantescos pneus do jato se chocam no chão de concreto e a nave começa a taxiar rumo ao terminal de passageiros. À tarde, o céu sangra de tão azul. 

Então, já não controlo meu coração. Faço desjejum no Ver-O-Peso, café recém coado com tapioquinha amanteigada, e depois vou apreciar os peixes dispostos nos balcões de mármore do mercado – os pirarucus são, talvez, os mais bonitos, os filhotes são enormes e os meros, imensos, há sempre piramutaba, pescada, tucunaré, curimatã, tamuatá, mapará, gurijuba, camarão e toda sorte de frutos do mar. Almoço camarão com pirão de açaí no Ver-O-Peso, ou filhote no Restaurante Remada, ou ventrecha de dourada com vinagrete e farofa na Vila Sorriso, ou pirarucu ao molho de castanha-do-pará no Mangal das Garças. À tarde, vagabundeio, tomo tacacá na banca do Colégio Nazaré e sorvete de tapioca na Cairu, e, à noite, janto caldeirada de filhote no Remada e bebo Cerpinha no banheiro do hotel, enquanto me arrumo para o encontro com a madrugada. Assim, os dias se sucedem com cheiro de maresia, mulheres caminhando, merengue, bebedeiras, o rio.

Belém é a Catedral da Virgem, rosas para a madrugada, lembranças guardadas numa prece, o desfile interminável das mulheres mais bonitas do mundo, que exalam perfume das virgens ruivas e espargem um rastro de devaneio, que só podemos sentir com o coração. Ungido pelos deuses, penetro neste santuário e dele engravido para sempre. Belém, como as mulheres muito bonitas, inesgotáveis de tão intensas, desencadeia, na minha memória, um cataclismo de rosas colombianas, jasmineiros chorando em noite tórrida, o céu de julho na Amazônia, que sangra no azul na tarde.

Caminho nas suas ruas rumo aos segredos que só eu posso decifrar, como ouvir o anoitecer na Estação das Docas, ver passar as mulheres mais bonitas do mundo enquanto tomo tacacá defronte ao Colégio Nazaré, ouvir o rio, beber o perfume de gim inglês no Cosa Nostra, a alegria das mulheres no Kalamazoo, ao som de merengue e da madrugada, e fazer uma declaração de amor desesperado, porque as cidades, como as mulheres, não podem ser decifradas; precisam apenas ser amadas, pois só para isso existem, como poemas escritos por Deus.

Da mesma forma que as mulheres, as cidades são redes intermináveis de labirintos, abismos de segredos, pelos quais voamos, sempre perdidos, mas firmemente guiados pelo azul mais azul. Cidades, exatamente como as mulheres, iluminam nossos sentidos, e as cavalgamos como se monta a luz.
Sentado no calçadão defronte ao Colégio Nossa Senhora de Nazaré, ao embalo das 6 horas da tarde, caminho ao lado de cada uma das mulheres que passam, e que deixam um rastro de espilantol, sintetizando todo o mistério sob seus vestidos estampados, de seda. Então, descubro o segredo da Hileia, deslindo o mistério, e, assim, o amplio: toda a Amazônia está contida no espilantol de um ramo de jambu. E, aos iniciados, Belém se revela em toda a sua poesia, como mulher ao toucador, absorta, nua.
Agora estou sentado na Estação das Docas. A tarde morre. Ouço murmúrios – risos distantes, preces, merengue. Pedi à Virgem de Nazaré que proteja as crianças e as flores. A tarde morre, escorre como um rio de luzes que se afogam no mar da noite, para ressurgir no ventre da cidade, como uma boca. Acomodado numa cadeira de palhinha, observo o rio e a tarde morrendo. Ouço o riso das mulheres mais sensuais do mundo, trotando nos calçadões, sentadas, tomando tacacá, naquele momento em que a noite cai lentamente, se acamando, até as luzes tremeluzirem, como composição de Debussy, e sinto o sabor do leite da mulher amada, lábios de rosas esmigalhadas, vermelhas.
Um navio parte. Talvez vá para Macapá, ou Trinidad e Tobago. Talvez vá para Caiena. Ou para Mosqueiro. Ou Salinas. De qualquer forma, haverá de ir para um lugar lindo, pois a tarde é povoada de mulheres em vestidos de seda, como uma negra caribenha, sílfide equina, que passa, iluminando o mundo. Vindo de algum lugar, remoto, penso ouvir merengue. O mundo gira. Sinto a vertigem de missa na Catedral; a noite é como o mistério feminino, uma prece, e, assim, tenho certeza de que estou em Belém.

    

 RAY CUNHA – Escritor e Jornalista baseado em Brasília-DF, Brasil

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