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5/03/2011

Ray Cunha



O calçadão entre o Conjunto Nacional e o Conic estava entupido de vendedores ambulantes atacando os transeuntes, muitos deles parando para ver as bugigangas do Paraguai e da China, obstruindo a passagem dos que queriam prosseguir. Os mais apressados caminhavam pela rua mesmo, arriscando-se a ser atingidos pelos carros.
- Aqui, as últimas novidades do Paraguai: guarda-chuvas que se abrem automaticamente ao primeiro pingo d’água; bronzeador que deixará você que nem frango assado em televisão de cachorro; Adriane Galisteu de borracha para os solitários, insones e onanistas; bonecas que fazem pipi e até cocô...
- Nojento! - disse uma ambulante, ao lado.
- Faz cocô, sim. Quer ver?
- E não é que faz mesmo! Nojento! - disse de novo a ambulante.
Depois da exibição para a colega, S voltou a apregoar as últimas novidades do Paraguai. Aprendera aquele modo peculiar de anunciar os produtos com um publicitário conhecido seu. O publicitário lhe dissera: “É pá, queda...” S - Sócrates Souza, Salamaleque na infância e agora sacoleiro; só não era safado, nem sozinho - investira tudo no negócio, do qual vivia há três anos. Morava em Taguatinga, num barraco alugado, com a mulher, Samanta - vinte e um anos, “bonita demais” -, e três filhas, Salomé, Sara e Saionara.
Tudo aconteceu sem aviso, nem prenúncio, nem pista, na mais imobilizadora e absoluta surpresa. Meia hora depois, o Calçadão era desolação pura. Muita gente conseguiu salvar sua parte da parafernália do Paraguai, China, Taiwan, Coréia do Sul e outros tigres asiáticos, mas o ataque fora no coração do calçadão, e evoluíra numa manobra para o norte e para o sul, numa estratégia de terra arrasada. S fazia salamaleques e prestidigitações quando a boneca que defecava foi arrebatada pelos leões do Rapa em plena necessidade fisiológica. Os quarenta quilos de bugigangas sumiram como que por encanto. S ainda quis fazer um salamaleque na frente dos fiscais e levou uma cacetada na boca, de um PM do tamanho de um guarda-roupa de casal. Lá se foi um dente. Uma hora depois estava tudo terminado. Salamaleque, ou melhor, S, quedava-se desesperado em meio aos destroços da fervilhante feira do Paraguai. O movimento de pedestres continuava intenso. Anoitecia. S não pensava em nada. Não seria bom pensar. Colegas seus ainda rondavam aqui e ali. Estavam se organizando para ir aos jornais. “Os jornais vão é inventar umas histórias chorosas, de provocar dor de barriga” - pensou. Deu uma cusparada de sangue, levantou-se e foi pegar o fusca, estacionado defronte ao Conic. Ainda tinha o fusca.
- Porra! Não! Deus do céu, não! Meu Deus, meu Deus! - disse, procurando o carro. - Onde está meu fusca que deixei aqui? Deixo ele aqui todo dia! Onde está o fusca, Valdemar?
O guardador de carro olhou-o com seu olhar estúpido. - Vieram aqui dois caras dizendo que tu deste ordem... Pegaram o fusca e se mandaram.
Era nisso que dava ser tão popular. E agora, José? Agora só restava ir à polícia. Agora, sim, estava literalmente fodido. Por um caralho de asa, como dizia seu amigo publicitário. Por um passaralho. Daqueles caralhos que de tão perigosos voam diretamente para o cu das vítimas.
A viagem da Rodoviária do Plano Piloto para Taguatinga dura quarenta minutos de ônibus, se tanto, mas, às vezes, é muito mais longa, interminável, insuportável, ainda mais quando o ônibus parece uma lata de sardinha fechada. Teria que se vestir de macho. Era jovem - trinta anos - e bem disposto. Os três anjinhos não iriam passar fome. “Droga!” Samanta só queria estar no salão de beleza e deixava sozinhas as três meninas: dez, nove e oito anos. Depois da última, Samanta mandou que a capassem. “Dez anos de casamento...” S passara fora de casa boa parte desses anos todos. “O Ricardão deve ter se fartado.”
Em casa, as crianças estavam sozinhas, como sempre. Era mais fácil encontrar Samanta no salão de beleza, ou na vizinha, do que em casa. S beijou, cheirou, abraçou as filhas e disse que não ia demorar. Foi atrás da mulher. Ela não estava na casa da vizinha. Foi ao salão. Fechado. Pensou um pouco. Uma insinuação não saía da memória. “Vai pra casa, Padilha” - cansou de ouvir. Padilha era o personagem ingênuo de um programa de humor da televisão, casado com uma mulher estonteante, tão gostosa quanto grandes os cornos de Padilha. De qualquer forma, a desgraça despertara em S uma zona adormecida do seu cérebro. Certa vez encontrara na bolsa da mulher, ao procurar dinheiro trocado, uma caixa de fósforos do Hotel Bocas, não muito distante. Rumou para lá. Os dentes doíam todos.
O Bocas ostentava placa de hotel, mas todo mundo sabia que era motel. Naquele dia, quando encontrara a caixa de fósforos, Samanta dissera-lhe que apanhara “isso” no salão. Imaginou-a sendo “trabalhada”. Sentiu a dor de dente aumentar. Retornou para casa. Já passava das onze.
- Oh! amor, telefonaram para o salão e avisaram o que aconteceu. Fui correndo para encontrar você, mas você não estava mais lá. Mostre como está a boca! Nossa, o que fizeram com você?
- Roubaram o carro também.
- Não! querido! Oh! amor! - disse Samanta, e começou a chorar. S procurou uma cadeira e se sentou. Suas meninas o cercaram e o abraçaram. - Mas Deus é grande, Deus é grande. Mostre a boca - dizia Samanta.
Dali a pouco a casa adormeceu. Na varanda, brilhava uma lâmpada de quarenta velas.

Belém do Pará, 15 de março de 1996

SERVIÇO


O conto Dia de azar integra o livro O casulo exposto (LGE Editora, Brasília, 153 páginas, R$ 28), que enfeixa 17 contos ambientados em Brasília, inclusive o submundo político da capital. O fato de eu trabalhar desde 1987 como jornalista na cidade-estado, cobrindo amplamente o Distrito Federal, o Entorno (cidades goianas que o cercam) e o Congresso Nacional, municiou-me da ambientação dessas 17 histórias curtas. O prefácio é do escritor e jornalista Maurício Melo Júnior, apresentador do programa Leituras, da TV Senado, e a capa é assinada pelo artista plástico, cartunista e chargista André Cerino. O casulo do título do livro refere-se à redoma legal que engessa o Patrimônio Cultural da Humanidade, a borboleta de Lúcio Costa, ninfa golpeada no ventre, as vísceras escorrendo como labaredas de luxúria, depravação e morte nos subterrâneos da cidade dos exilados.
A fauna que transita na esfera política e chafurda nos subterrâneos brasilienses é heterogênea, e tenta sobreviver na ilha da fantasia, que arde numa imensa fogueira das vaidades. Políticos, inclusive daquele tipo mais vagabundo, que não pensa duas vezes antes de roubar merenda escolar; jornalistas se equilibrando no fio da navalha; tipos fracassados e duplamente fracassados; estupradores; assassinos; bandidos de todos os calibres, se misturam, nos contos, numa zona de fronteira fracamente iluminada. Contudo, a ambientação de sombra e luz tresanda, também, a perfume e a romance.
Compra em Brasília - Se você mora em Brasília, ou estiver em trânsito, O casulo exposto está à venda em duas lojas da Livraria Leitura: do Conjunto Nacional e do Pátio Brasil, dois shoppings centrais da cidade.
Compra no Brasil - Se você estiver em qualquer outra localidade do Brasil, ou do planeta, pode fazer o pedido do livro por meio dos sites das livrarias: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br); Cultura (www.livrariacultura.com.br); e Leitura (www.leitura.com).
Pedidos ao editor – Livreiros interessados em fazer pedido de O casulo exposto ao editor devem entrar em contato com Antonio Carlos Navarro, pelo e-mail: lgeeditora@lgeeditora.com.br, ou pelo telefone (55-61) 3362-0008. A loja virtual da LGE Editora (www.lojalge.com.br) também atende a pedidos de apenas um exemplar e o envia ao endereço do cliente.

Autor - Contato com o autor pelo e-mail: raycunha@gmail.com

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