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5/06/2011

Ray Cunha




Mulher se pintando

Eu me encontrava num ângulo de modo que podia vê-la impunemente, como um velho voyeur, que toma todos os cuidados ao praticar seu poético desvio, se seu interesse é apenas ver mulheres entregues a si mesmas. A tarde expirava, e a noite ia tomando conta da cidade, lenta, mas firme. Eu tomara o metrô na Praça do Relógio, em Taguatinga, e desceria na 112 Sul, no Plano Piloto. O vagão estava quase vazio e de onde eu estava podia vê-la de perfil. Seus ombros eram graciosos e tinha longo pescoço, que lembrava um Modigliane. Seus cabelos, negros, eram curtos, deixando-me ver o brinco, balançado como uma estrela cadente. Seu nariz era pequeno e as pestanas longas. Pressionada pelo meu olhar vampiresco, ela se virou nervosa em minha direção e vi que seus lábios eram quase finos. Foi então que começou o espetáculo.
Ela abriu a bolsa e sacou um estojo, de onde tirou várias ferramentas, entre as quais um espelhinho. Mirou-se, passou blush no rosto, espalhou-o, e quando abriu o batom ajeitei-me no banco. Ver uma mulher passando batom nos lábios me arrepia. Ela deslizou o bastonete vermelho em toda a extensão de ambos os lábios e depois esfregou um no outro. Eu respirei forte. Então ela guardou o estojo e se acomodou, segura de si e relaxada.
Desci na 112 Sul e quando passei por ela me voltei rapidamente, com o olhar clínico armado. Ela não era bonita para os padrões televisivos, mas rescendia à beleza da sensualidade que só existe no mistério. Para onde iria? Para quem pintara aqueles lábios, agora salientes como os de Angelina Jolie? Em quem deixaria aquela tinta vermelha que a fazia belíssima?
Quando emergi da estação do metrô já era possível sentir a força de gravidade da noite. Ia pensando na mulher do metrô e na beleza feminina, e então me dei conta de algo que me intrigava há bastante tempo. Por que certas mulheres, com traços perfeitos, são tão sem graça. Percebi que a beleza feminina é como as rosas no mistério da sua solidão, e que só podemos senti-la completamente se captamos as mulheres no momento de entrega a elas mesmas.
Em O grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, há uma sequência em que numa sala há um homem e duas mulheres. As mulheres parecem não ver o homem. Estão entregues a si mesmas, e são tão lindas que parecem flutuar na tarde. O homem aspira a cena, como um vampiro de luz.
Quando eu tinha 14, 15 anos, e recebi os primeiros beijos, de ninfetas tão lindas como rosas, havia um terremoto no coração, só comparado ao que sinto quando vejo uma mulher nua sentada ao toucador, a escovar os cabelos e a passar no pescoço e no colo fragrâncias de cio, os cabelos esvoaçando no mesmo abandono delas mesmas. Então, mais do que nunca, são como as rosas, que se bastam a si mesmas.

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