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1/12/2012

Belém, meu amor, ou uma declaração de amor desesperado





Vivi em Belém parte da minha vida, grandes amores, casei-me; graduei-me em jornalismo (embora, antes de ingressar na faculdade, já ganhasse o pão de cada dia com jornalismo há 7 anos); e publiquei meu único livro de poemas, Sob o céu nas nuvens. Durante mais de uma década, andei, como repórter, por toda Belém, conhecendo-a amplamente, e durante minha estada na cidade atravessei um dos períodos mais duros da minha vida, quando, despejado e desempregado, encontrei refúgio na Casa do Estudante Universitário do Pará (Ceup). Foi uma das escolas, as quais, graças a Deus, sempre encontrei, que me enrijeceram como um espartano.
Sou de Macapá, mas elegi Belém como meu amor. Amo todas as cidades onde já vivi, pois não podemos viver numa cidade sem a amar, pelo menos não por muito tempo. Todas as vezes que vou a Macapá é como se voltasse a encontrar as primeiras mulheres que me beijaram, provocando o cataclismo de sentimentos que nos orienta por toda a vida. Macapá me sacode, me lança no ar, como nos sonhos que às vezes povoam minhas noites. É como se eu estivesse correndo numa planície de zínias e rosas, cortada pelo maior rio do mundo, desaguando na noite prenhe de jasmineiros chorando. Evoca-me amores da juventude, madrugadas curvado sobre papel em branco, aguardente, imortalidade, que, depois descobrimos, não é física. Namorei carnalmente Macapá durante 17 anos. Nosso namoro continua firme, mas agora só no coração.
Também amo o Rio de Janeiro. Vivi, durante dois anos, em Copacabana, e assim fui seduzido, como todos, para sempre. Sinto-me em casa, no Rio de Janeiro, e, todos os dias, com a sensação do retorno. Em 2010, passei uma semana com minha gata, Josiane, hospedados num hotel no Flamengo. Curtimos adoidado a Zona Sul, descobri novos segredos e vi coisas que nunca vira, com o olhar encantado, mais maduro, do descobridor.
Em Manaus, é a mesma coisa, e em cada cidade a vida se multiplica infinitamente em magia. Como em Brasília, onde nasceu Iasmim.
Belém é como mil e uma noites. Na minha realidade, vejo-a como uma mulher que emerge, lentamente, do rio, nua. Tento me aproximar dela e, antes de alcançá-la, desaparece no bar do clube, mas deixa um rastro de maresia, Chanel número 5, champanhe e rosas vermelhas. Ela para, volta-se e diz meu nome. Sua voz é como o pulsar da música de Mozart. Finalmente a alcanço, pego-a pelo cangote e a beijo. Sua boca tem sabor de acme.
Em 13 de fevereiro de 2011, publiquei no meu blog uma crônica em homenagem a Belém do Pará, que, nesta quinta-feira 12, completará 396 anos de fundação. Publico, agora, a mesma crônica, com a necessária revisão.


Nem os ratos - que se dedicaram a te assaltar, a te depredar, a te estuprar, que te morderam os seios - conspurcaram tua beleza, nem reduziram tua eternidade, Belém. Parabéns, querida, pelos teus 396 anos, que completas em 12 de janeiro deste 2012. Conforme a Breve história da Amazônia, de Márcio Souza (Agir, Rio de Janeiro, 2001, 239 páginas), naquela data, em 1616, os portugueses, comandados por Francisco Caldeira Castelo Branco, desembarcaram numa enseada na foz do rio Guamá e começaram a construir uma fortaleza, a que chamaram Forte do Presépio, e à cidade que foi surgindo em torno do forte chamaram de Santa Maria de Belém.
Os tupinambás, que lá moravam, não deram descanso aos invasores. Mas, além de armas de fogo, “os portugueses eram superiores em proselitismo religioso e em doenças letais” – como diz Márcio Souza. E em 1626, assumiu o governo do forte Bento Maciel Parente. Se os colonizadores portugueses eram brutais, pareciam gentis diante da loucura de Bento Maciel Parente, que mandava amarrar os membros dos índios em cavalos ou em canoas até que fossem rasgados, vivos. Pelo menos 2 milhões de índios foram assassinados na Amazônia, escravizados em nome de Jesus Cristo, atingidos por letais doenças europeias, degolados, esquartejados ou fuzilados.
No começo do século XX, a exportação de borracha tornou Belém e Manaus, sua vizinha nas distâncias amazônicas, as cidades mais ricas do país. Em 1910, os ingleses começaram a plantar seringueiras no sudeste asiático, causando a débâcle da borracha na Amazônia. Aí começou o declínio de Belém. Hoje, Belém é uma cidade sucateada, inchada, violenta, infestada de bandoleiros e ratazanas, com suas ruas emporcalhadas de esgoto minando do meio-fio, cidadela corrompida por alcaides parasitários, e, durante quatro anos (2007-2010), também por um governo letal como câncer metastático.
Contudo, Belém é bela como mangueiras em dezembro, carregadas de mangas, doces como seios, como mulher na rede, mulher amada. É assim que Belém vive no meu coração. Quando chegamos a Belém, ao amanhecer, pela baía do Guajará, nós, que a amamos, vemo-la se despir, aos poucos, da névoa, até emergir, nua. Se chegamos de avião e é noite as luzes na península, como miríade na noite que desaba sobre a baía, anunciam-se como ovnis, até pousarmos no bolsão de sol noturno de Val-de-Cães. À tarde, o céu sangra de tão azul.
Já não controlo meu coração. Faço desjejum no Ver-O-Peso, café recém-coado, com tapioquinha amanteigada, e depois vou apreciar os peixes enfileirados nos balcões de mármore do mercado - os pirarucus são, talvez, os mais bonitos, os filhotes são enormes e os meros, imensos, há sempre piramutaba, pescada, tucunaré, curimatã, tamuatá, gurijuba, mapará, camarão e toda sorte de frutos do mar. Almoço no Ver-O-Peso, dourada com pirão de açaí, ou filhote no Restaurante Remada, ou dourada com vinagrete e farofa na Vila Sorriso, ou pirarucu ao molho de castanha-do-pará no Mangal das Garças. À tarde, vagabundeio, tomo tacacá na banca do Colégio Nazaré e sorvete de tapioca na Cairu, e, à noite, janto caldeirada de filhote no Remada e bebo Cerpinha no banheiro do hotel, enquanto me arrumo para o encontro com a madrugada. Assim, os dias se sucedem com cheiro de maresia, mulheres caminhando, merengue, bebedeiras, o rio.
Belém é a Catedral da Virgem, rosas para a madrugada, lembranças guardadas numa prece, como as mulheres mais bonitas do mundo, que exalam perfume das virgens ruivas, espargem um rastro de devaneio, que só podemos sentir com o coração. Ungido pelos deuses, entrei neste santuário e dele estou grávido para sempre. Belém, como as mulheres muito bonitas, inesgotáveis de tão intensas, desencadeia, na minha memória, um cataclismo de rosas colombianas, o Concerto Para Piano e Orquestra, em Ré Menor, de Mozart, jasmineiros chorando em noite tórrida, o céu de julho, na Amazônia, que sangra um jorro de giz azul nas tardes de risos.
Ouço o riso das mulheres mais bonitas do mundo, trotando nos calçadões, sentadas, tomando tacacá naquele momento em que a noite cai lentamente, se acamando, até as luzes da noite tremeluzirem como composição de Debussy, e sentirmos sabor de leite da mulher amada, lábios de pétalas de rosas vermelhas, esmigalhadas, Chanel Número Cinco, Dom Pérignon e maresia. Acomodado numa cadeira de palinha, na Estação das Docas, observo o rio e a tarde. Um iate parte. Talvez vá para Macapá, ou para Trinidad e Tobago. Talvez vá para Caiena. Ou para Mosqueiro. Ou Salinas. De qualquer forma, haverá de ir para um lugar lindo, pois a tarde é povoada de mulheres em vestidos de seda. Vindo de algum lugar, remoto, penso ouvir merengue. Concentro-me numa prece. O mundo gira. Sinto a mesma vertigem de missa na Catedral. Tenho certeza, então, de que estou em Belém.
Caminho nas tuas ruas rumo aos segredos que só eu conheço, como ouvir o anoitecer na Estação das Docas, ver passar as mulheres mais bonitas do mundo enquanto tomo tacacá defronte ao Colégio Nazaré, ouvir o rio. O mundo nos quebra, mas tudo o que amamos permanece intacto no relicário do coração: o mundo a girar ao perfume de gim inglês no Cosa Nostra; a alegria das mulheres no Kalamazoo, ao som de merengue e da madrugada; uma declaração de amor desesperado.



Brasília, 12 de janeiro de 2011


RAY CUNHA

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