Mortos e vivos se reúnem em Macapá
Brasília – Finados. Ontem, choveu um pouco no Planalto Central, amenizando os vestígios de secura da primavera. A temperatura está agradável. Acabo de fazer as orações aos meus antepassados e mortos da família. Nesta época do ano, as noites no Planalto Central ainda são quentes e secas. Quando são muito quentes, abro a porta da sacada e a janela do meu quarto para uma eventual brisa circular pelo apartamento. Às vezes, se a noite é ardente, sinto o perfume exalado pelo jasmineiro. Meu jardim compõe-se de um arbusto de léia-rubra, um belo comigo-ninguém-pode, duas violetas, um lírio e duas jibóias, além do jasmineiro. Quando estou sozinho, gosto de ouvir o silêncio, e de percorrer as lombadas dos meus livros de cabeceira na estante. Apanho Cheiro de Goiaba, de Gabriel García Márques, e vou para o sofá. Cheiro de Goiaba é um bate-papo entre Gabo e Plínio Apuleyo Mendoza, publicado em 1982. Em espanhol, El Olor de la Guayaba. Este livro contém o trópico como tempestade nos campos das minhas lembranças.
Em Brasília, só percebemos plenamente o trópico nos dias quentes, pois as mulheres povoam as ruas e os shoppings trajando roupas folgadas e decotados e sandálias. Mas as brasilienses não recendem a goiaba. Nem a Chanel Número 5 e maresia. Nem, tampouco, transmitem a embriaguez do gim. Lembras-te, Fernando Canto, daquela noite, em Belém, quando nos embriagamos com gim? Houve outras noites regadas a daiquiri, Cerpinha e Strega.
Fernando Canto degusta Cerpinha. Troncos gigantescos de árvores espraiam-se até onde a vista alcança no mangue, desde a Fortaleza São José de Macapá até o Igarapé das Mulheres. O Trapiche, defronte ao Macapá Hotel, é uma rua comprida, sem semáforos e sem esquinas. Se é maré cheia e venta, ondas sucessivas explodem no quebra-mar. Mulheres bonitas espalhavam um rastro perfumado no rio azul da tarde, quase noturna. Perto, na Rua Mário Cruz, o poeta Isnard Lima Filho ouve o silêncio da tarde, enquanto espera a grande dama, a noite, na expectativa de uma possível incursão etílica.
O rio Amazonas açoita o quebra-mar com sua força descomunal. Os troncos foram removidos faz muito tempo. O Trapiche se afoga no mar doce e, longe, um navio grande como uma cidade se move como lesma para o Norte e se encontrará com o Atlântico. O antigo prédio do Macapá Hotel foi demolido e no seu lugar ergueram um hotel mais amplo e confortável, embora sem o encanto daquelas tardes de outrora.
Sirvo Fernando Canto de nova taça de Cerpinha. Não sei se o poeta prefere Cerpinha, nem se os bares do quebra-mar servem-na enevoadas, mas, aqui, na dimensão da poesia, só há o melhor das nossas vidas. Fernando Canto também ouve o silencioso aproximar-se da noite firme. Ouve-se merengue. Embora o som e as mulheres povoem um bolsão de silêncio. O poeta, quem sabe, trabalha um poema, ou compõe uma canção, ou absorve o embrião de um conto, enquanto voa na noite iluminada por mulheres inacreditáveis de tão lindas.
Quanto a mim, há muito tempo não me sentia tão feliz. Estou em Macapá, bebendo Cerpinha enevoada com Fernando Canto.
- Ela logo virá – diz Fernando Canto.
Sim. Aguardo-a. Ela esparge rosas colombianas à sua passagem e tem o poder de evocar a estrela azul.
- Será como num conto – diz Fernando Canto.
- Como num conto de Gabriel García Márquez – digo.- Em Barranquilha? – Fernando Canto pergunta.
- Não! – respondo.
– Em Macapá, mesmo, mas num conto de Gabriel García Márquez.
De repente, sinto o perfume tênue das rosas.
- Gabo é como um morto com quem eu gostaria de ter convivido – disse. Fernando Canto ficou atento. – Conheço-o demais sem nunca sequer o ter visto. Mas conheço-o apenas na dimensão da poesia, não como conheço a ti, Fernando – disse ao poeta. – Isso ocorre também com meu pai e com Ernest Hemingway. Ah! meu pai era bonito e não tinha medo! Ele me contou histórias maravilhosas... Vejo-o em sonhos e sinto sua presença quando oro para meus antepassados. Meu pai é uma das pessoas com quem eu gostaria de passear e bater papo, agora, que me sinto maduro para isso. Não tive, entretanto, essa oportunidade.
- E Hemingway? – Fernando Canto perguntou.
- Todos os anos, envio para a Academia Espiritual da Seicho-No-Ie, na cidade de Ibiúna, em São Paulo, pedidos de oração para mortos queridos, entre os quais Papa Hemingway. Os mortos recebem oração o ano todo. Fernando, saiba que oração, para os mortos, é luz, luz que conduz à Harmonia cósmica, que é Deus. Pois bem, no primeiro ano que enviei o nome de Papa para Ibiúna sonhei com ele. Encontrava-me em um teatro que me lembra o interior do antigo Cine Palácio, na Avenida Presidente Vargas, em Belém. Papa estava sentado entre duas pessoas na platéia superior. Seus cabelos estavam completamente brancos e ele, muito magro e com aquela debilidade das pessoas muito velhas, embora tivesse apenas 61 anos. Logo depois o vi no palco. Várias pessoas o ladeavam. Era o jovem Hemingway, trajando seu humilde terno preto dos tempos em Paris. De repente, ele desceu do palco e passou por mim, voltou-se e me olhou nos olhos. Obrigado!, ele me disse, em silêncio.
Fernando Canto pedira novas Cerpinhas e novas taças, e me servira a enevoada cerveja paraense, a mais deliciosa do mundo. Em Brasília, são 2 de novembro, mas, na dimensão da poesia, não é novembro, pois chove, em novembro, na Amazônia. É uma noite mágica de julho, quando todas as estrelas da galáxia se aglomeram no céu de Macapá, os jasmineiros enlouquecem e as mulheres ficam ainda mais bonitas
.- Isnard! – Fernando Canto gritou. O poeta Isnard Lima Filho, trajado em linho branco, inglês, aproximou-se, sorrindo. Logo depois chegou o pintor Olivar Cunha. De um instante para o outro, nos reuníamos em torno de várias mesas, agora também com Alcinéa, Hemingway, Gabo, meu pai, e havia outros mortos e vivos. Ganhei um sorriso de Savina e lá estava Antoine de Saint-Exupéry. Francisco, meu irmão, me abraçou. Tinha a mesma beleza e imortalidade de sempre. Mamãe me deu um abraço redentor. É a mulher mais maravilhosamente linda e forte que já conheci. Linda, minha irmã mais velha, também estava lá. De repente, todos estavam lá, mortos e vivos, estávamos lá, ofertando rosas para a madrugada.
Masaharu Taniguchi também estava lá, e declamou Canto da Vida Eterna.
Este corpo é como o arco-íris.
O arco-íris não é perenee
e em breve desaparece.
Este corpo é como a bolha.
A bolha não é perene
e em breve desaparece.
Este corpo é como a miragem.
A miragem não é perene
e em breve desaparece.
Este corpo é como o eco.
O eco não é perene
e em breve desaparece.
Este corpo é como o relâmpago.
O relâmpago não é perene
e em breve desaparece.
Este corpo é como a nuvem.
A nuvem não é perene
e em breve desaparece.
Este corpo é como a correnteza.
A correnteza é inconstante
e se escoa sem parar.
Este corpo é como a bananeira:
parece que é sólido,
mas não tem consistência.
Este corpo é como o fogo:
parece que transmite calor,
mas a tudo consome e se extingue.
Este corpo é como o sonho:
parece que é real,
mas é irreal e efêmero.
Este corpo vem da ilusão:
parece ter substância,
mas é vazio e efêmero.
Este corpo é desamparado;
parece ter amparo,
mas logo se desmorna.
Este corpo não possui mente;
embora pareça possuí-la,
não a possui, tal qual entulho.
Este corpo não tem vida;
como palha carregada pelo vento,
é arrastado pela força do carma.
Este corpo é impuro;
embora pareça formoso,
está repleto de impurezas.
Este corpo é transitório;
embora pareça duradouro,
um dia terá de morrer.
Não é existência verdadeira
o que some como a bolha,
o arco-íris, a miragem, o eco.
Não tomeis por vosso Eu
o que não é existência verdadeira;
jamais o considereis vosso Eu.
O que é efêmero não é o vosso Eu.
O que morre não é o vosso Eu.
O que desaparece não é o vosso Eu
O que é eterno, eis o Eu!
O que é imortal, eis o Eu!
O que é universal, eis o Eu!
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