O cheiro do desencanto
Brasília -Todo repórter policial guarda na memória o cheiro das delegacias de polícia. Elas cheiram a antiguidade, a ácido úrico, a sangue, a sonolência, arrogância, pólvora, objetos quebrados, carro velho, poeira, espera, crimes sem solução, arquivo, diálogos que se ouvem em qualquer repartição pública, choro, gritos, ódio, desencanto.
Esclareço que, provavelmente, as delegacias de polícia modernas não sejam mais assim. Comecei no jornalismo como repórter policial do Jornal do Comércio de Manaus, em 1975, em plena ditadura militar, e a sede da Polícia Civil do Amazonas, o Casarão, como o chamávamos, recendia a tortura, aos cheiros que essa palavra exala. Sou, por conseguinte, de um tempo antigo. O tempo se acama na nossa memória.
Estive outro dia na Câmara Legislativa de Brasília e senti o mesmo cheiro velho de coisas bolorentas, de caça-níquel eleitoral, de velhos jornais de periodicidade incerta feitos de releases, de debates inúteis, de repartição pública.
Sinto esse cheiro nos corredores do Congresso Nacional, mais intenso, espirrando, às vezes, nos subterrâneos labirínticos, em horas mortas, do “puder”. Zé Sarney exala esse cheiro. Certa vez, entrevistei o senador Cristovam Buarque para o site ABC Politiko, quando Cristovam foi candidato à presidência da república. A entrevista ocorreu no café dos senadores, um agradável espaço contíguo ao plenário. Enquanto eu esperava o senador brasiliense, Zé Sarney entrou no recinto.
Zé Sarney é macilento e pinta os ralos cabelos. De perto, mesmo fardado de terno, parece um velinho de asilo; de modo algum dá pista da fera que se esconde na casca de velinho de asilo. Creio que Zé Sarney reúne, mais do que as delegacias de polícia, do que as repartições públicas, o cheiro do desencanto.
Tenho uma arma eficaz para combater o desencanto. Quando que me exponho a esse miasma, ouço Mozart, leio Gabriel García Márquez, ou observo rosas. Então transcendo a dimensão do desencanto, montado em um besouro furta-cor, voando sem fim.
Ray Cunha
Esclareço que, provavelmente, as delegacias de polícia modernas não sejam mais assim. Comecei no jornalismo como repórter policial do Jornal do Comércio de Manaus, em 1975, em plena ditadura militar, e a sede da Polícia Civil do Amazonas, o Casarão, como o chamávamos, recendia a tortura, aos cheiros que essa palavra exala. Sou, por conseguinte, de um tempo antigo. O tempo se acama na nossa memória.
Estive outro dia na Câmara Legislativa de Brasília e senti o mesmo cheiro velho de coisas bolorentas, de caça-níquel eleitoral, de velhos jornais de periodicidade incerta feitos de releases, de debates inúteis, de repartição pública.
Sinto esse cheiro nos corredores do Congresso Nacional, mais intenso, espirrando, às vezes, nos subterrâneos labirínticos, em horas mortas, do “puder”. Zé Sarney exala esse cheiro. Certa vez, entrevistei o senador Cristovam Buarque para o site ABC Politiko, quando Cristovam foi candidato à presidência da república. A entrevista ocorreu no café dos senadores, um agradável espaço contíguo ao plenário. Enquanto eu esperava o senador brasiliense, Zé Sarney entrou no recinto.
Zé Sarney é macilento e pinta os ralos cabelos. De perto, mesmo fardado de terno, parece um velinho de asilo; de modo algum dá pista da fera que se esconde na casca de velinho de asilo. Creio que Zé Sarney reúne, mais do que as delegacias de polícia, do que as repartições públicas, o cheiro do desencanto.
Tenho uma arma eficaz para combater o desencanto. Quando que me exponho a esse miasma, ouço Mozart, leio Gabriel García Márquez, ou observo rosas. Então transcendo a dimensão do desencanto, montado em um besouro furta-cor, voando sem fim.
Ray Cunha
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