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8/16/2009

O Alquimista


De garoto bem-comportado, pelo menos na aparência, ao cabeludo de óculos escuros da fase adulta, Raul se reinventava

Há 20 anos Raul Seixas deixava este plano para outra dimensão da realidade. O Brasil perdeu o maior cantor-compositor de sua história, não apenas pelo seu talento como cantor, mas pela sua capacidade de compor músicas com letra e conteúdo. Não desmerecendo os grandes compositores e cantores da MPB, mas é necessário reconhecer que, em Raul Seixas, a música brasileira se eleva a outro patamar, outro nível de compreensão de nossa realidade.

Raul dos Santos Seixas (Bahia, 1945-1989) foi o primeiro compositor a transformar a música, de instrumento poético em instrumento filosófico, discutindo desde questões políticas, até questões metafísicas e existenciais, tudo isso de forma bem humorada, mas acima de tudo numa linguagem acessível a qualquer pessoa. Infelizmente, Raul muitas vezes foi tachado de maluco (não o Maluco Beleza, é claro!) ou visto como mero comediante, numa tentativa de estereotipar sua música e sua atitude, apresentando-o como coisa exótica, mas felizmente o gênio revolucionário do Raulzito conseguiu assimilar estes estereótipos e transformá-los na sua marca inconfundível. Mesmo quando parecia ter se esgotado, ele conseguia surpreender e se reinventar, numa constante reflexão sobre a nossa identidade cultural e sobre si mesmo.
Em Raul são quebrados todos os paradigmas, as questões surgem como de uma fonte inesgotável, resultado de uma bagagem cultural e literária que o Raulzito acumulou durante anos de leitura e curiosidade fora do comum, mostrando-se desde cedo uma pessoa irreverente. Sua paixão pela leitura e pela escrita deu como resultado uma obra musical ímpar que une de forma primorosa uma poesia incrível, e ao mesmo tempo, uma profundidade filosófica rica de metáforas e alegorias. Entre as grandes influências que podemos perceber na obra de Raul podemos citar: os grandes poetas brasileiros, entre eles o paraibano Augusto dos Anjos, a Filosofia em geral, em especial o filósofo Nietzsche (1844-1900) e o anarquista francês Joseph Proudhon (sec. XIX), o pensador e mago inglês Aleister Crowley (sec. XIX, escritor do "Liber Oz" ou "O livro da Lei", Crowley era admirado pelo poeta português Fernando Pessoa, e cognominado a ´Besta do Apocalipse´), os grandes livros da humanidade, tais como a Bíblia, o Tao Te King, o Alcorão e o Baghavad Gita (do épico hindu Mahabharata). Sua música era uma alquimia musical, com ela podia-se refletir sobre todas as questões possíveis, com temas que vão desde o amor, a morte, a loucura, a utopia de uma nova sociedade, da figura do Diabo ao ateísmo, do Baghavad Gita à ciência moderna, da Náusea existencialista aos problemas da ditadura no Brasil, dos segredos do universo à prestação que vai vencer. A paixão de Raul Seixas pela literatura e sua vontade de escrever foram obscurecidas pelo seu talento musical, o qual segundo ele era apenas um veículo ou uma desculpa para revelar suas idéias. A obra musical de Raul Seixas pode ser comparada a uma enciclopédia de conhecimentos sobre a vida, onde cada música traz uma ou mais temáticas que dão o que pensar, em suma, a cultura de sua época transformada em poesia filosófica.
Raul é o resultado alquímico de tudo que ele assimilou em termos de cultura popular, erudita e contracultura. Ele é um dos "baby boomers", ou seja, os bebês nascidos na era da bomba nuclear, aqueles que viveram numa época de transformações profundas nos costumes, na sociedade, na economia, no amor, etc. Ele viveu intensamente as décadas de 50 (época do surgimento do rock n roll, a expressão mais radical da revolução jovem), 60 (época do surgimento da guerra fria e das mudanças tecnológicas, além da revolta contracultural, dos hippies e do maio de 68), 70 (época da guerra do Vietnã, da discoteca, dos punks e do auge da Ditadura Militar no Brasil) e, por fim, da década de 80 (segundo ele mesmo, uma "charrete que perdeu o condutor"), uma década de ilusões perdidas, do fim da Ditadura Militar, da queda do muro de Berlim, do fim das ideologias e das utopias e da URSS.
A grande utopia de Raul Seixas foi, como todos sabemos, a Sociedade Alternativa, ou seja, uma coletividade de indivíduos autônomos e co-responsáveis pelo bem estar de todos, nela seria permitido fazer tudo aquilo que não impeça o outro de fazer o que ele quer. Aqui surge um tema presente no pensamento de Aleister Crowley, a conhecida lei de Thelema ou Faze o que tu queres (Do what thou wilt), que não pode ser entendida como uma libertinagem irresponsável, mas como a forma mais radical da liberdade, ou seja, fazer o que se quer implica em permitir e reconhecer que o outro também tem o direito de fazer o que quer, ou seja, deve-se fazer aquilo que permita o outro ser livre.
É uma liberdade inclusiva, pois pressupõe a liberdade do outro e não a exclui, na medida em que reconhece o outro como sujeito de vontade. Na música Novo Aeon se esclarece o que é a Sociedade Alternativa: "Sociedade Alternativa é Sociedade Novo Aeon / é um sapato em cada pé / direito de ser ateu ou de ter fé / ter prato entupido de comida que você mais gosta / ser carregado ou carregar gente nas costa / direito de ter riso ou ter prazer / e até direito de deixar Jesus sofrer!". Essa concepção de liberdade individual está presente nas músicas "Sociedade Alternativa" e "A Lei". Na primeira música, fica claro a composição desta sociedade que permite tudo a todos, sem impedir que todos façam o que querem, ela está presente na consciência de cada um, como se diz no clipe da música, "Você pode não estar na Sociedade Alternativa, mas a Sociedade Alternativa sempre esteve dentro de você". Já na música "A Lei", se diz que "todo homem tem direito de pensar, de fazer, de criar, o que quiser..., mas todo homem tem direito de matar todo aquele que quiser contrariar esses direitos...o amor é a lei, mas o amor sob vontade". O amor é a lei, mas esta lei não permite que o amor suplante a vontade, que é o princípio supremo ao qual estão submetidos todos os direitos, já que estes estão fundados nela. A vontade é a máxima expressão da liberdade, segundo a utopia de Raul Seixas. Pra quem pensava que Raul era apenas mais um cantor, sua obra é na verdade um acervo cultural, que não decepciona aquele que a estuda atentamente, continuando a nos desafiar até os dias hoje.
Vinte anos se passaram e constatamos a ausência na música brasileira de algum cantor e compositor que possa ser como Raul Seixas, um espelho crítico de nossa época, alguém que tinha a sensibilidade para reunir num todo coerente a nossa herança cultural e os desafios que se apresentam ao mundo contemporâneo. A prova de que o mito Raul Seixas ainda está vivo é toda produção literária que surgiu desde sua morte, inúmeros pesquisadores da herança cultural do Raulzito, que já perfazem 02 teses de doutorado, 03 dissertações de mestrado, 04 monografias, vários artigos em jornais e revistas, publicações e produções midiáticas das mais diversas, mostrando de forma clara que tudo o que Raul Seixas fez não foi em vão, mas continua sendo reinventado.Sentimos um misto de saudade e alegria nesses 20 anos sem Raul Seixas, saudade pela ausência do Raulzito na cena musical brasileira, porém sentimos alegria em poder resgatar sua presença não apenas em suas músicas, mas na atualização de todo seu legado cultural e literário. Que me perdoe o mago e escritor Paulo Coelho, mas Raul Seixas é verdadeiramente nosso mais autêntico alquimista, no qual poucos conseguiram encontrar a pedra filosofal! Tá rebocado!
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Francisco José da Silva

Mestre em Filosofia e professor do Curso de Filosofia da Universidade Federal do Ceará - Cariri

NR – Transcrito do Diário do Nordeste, por solicitação de blog/leitor Adelmo Menezes da Silva

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