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4/21/2008

ENSAIO
Por que a mídia sudestina não pode refletir a Amazônia

Brasília – A verdade da Amazônia só poderá ser revelada, no âmbito jornalístico, por repórteres munidos de duas ferramentas cruciais: conhecimento da alma amazônida e talento literário, este, não no sentido da invenção, mas de revelar como as coisas eram. Nesse contexto, a imprensa de São Paulo e Rio de Janeiro, a chamada mídia nacional, mantém-se na superficialidade da questão amazônica. Quais são essas ferramentas e como obtê-las é o objetivo deste minúsculo ensaio.
A Amazônia não sairá mais da pauta da mídia mundial, por uma razão: trata-se do mais importante mecanismo de equilíbrio climático da Terra. Segundo as mais recentes previsões científicas, sem a Amazônia a Humanidade enfrentará cataclismos e estiagens que exterminarão com populações inteiras, e o Trópico Úmido detém em torno de 15% da água doce de superfície, a mais exuberante biodiversidade do planeta e incalculáveis jazidas de metais estratégicos e pedras preciosas. Além disso, a Grande Floresta é dizimada à razão de pelo menos 10 mil quilômetros quadrados por ano; índios, caboclos, ribeirinhos, quilombolas morrem aos magotes, de fome, doença, escravidão, assassinato e suicídio.
Para cessar a destruição da floresta a diplomacia do governo brasileiro já deixou claro aos organismos internacionais que isso só acontecerá se pagarem. E se os países ricos resolverem mesmo pagar para que a mata fique em pé, aí é que os povos das florestas não valerão nada mesmo, pois serão proibidos de comer sequer uma folha de árvore.
Mas isso será uma faca de dois gumes. O ensaísta geopolítico Gelio Fregapani defende, no seu livro Amazônia – A grande cobiça internacional, que o Brasil só conservará a Amazônia se povoá-la; nesse aspecto, índios e caboclos aliados às Forças Armadas são fundamentais para assegurar nossa soberania, numa possível guerra de guerrilhas, a mesma estratégia utilizada pelos vietnamitas na sua vitória contra os americanos e na iminente vitória dos iraquianos também contra os Estados Unidos, que, apesar do seu arsenal nuclear, capaz de devastar o planeta inteiro, só poderá ocupar efetivamente o solo por meio da presença humana.
Nesse cenário, a imprensa internacional vê a Amazônia como um santuário e os amazônidas como uma horda bárbara. A mídia nacional, ou sudestina, vê a Amazônia com desprezo colonizador. Quanto às empresas de comunicação social da própria Amazônia são, quase sempre, familiares; mantêm um relacionamento suspeito com políticos, principalmente governadores; desprezam a própria região que as enriquecem; e não cultivam o mínimo compromisso social inerente à natureza do jornalismo.
Restam os repórteres estrangeiros cosmopolitas; os repórteres sudestinos cultos, sem a boçalidade da visão colonialista, etnocentrista; e os jornalistas da própria Hiléia, comprometidos com os atores principais da tragédia da Amazônia: os amazônidas. Isso, contudo, não é suficiente. A Amazônia precisa ser despida, examinada minuciosamente, auscultada, estudada, analisada, dissecada e apresentada ao mundo tal como é, para ser, só então, compreendida e amada. Para isso, além do comprometimento social, os repórteres incumbidos dessa missão necessitam de ferramentas especiais.
As ferramentas da verdade - Para os jornalistas que não foram educados na Amazônia e pretendem conhecer a alma amazônida é fundamental uma temporada de pelo menos dois anos na Hiléia, para ver e comparar o inverno e o verão amazônicos, aprender a apreciar sua cozinha, sentir os infinitos perfumes e sons da floresta e mergulhar nas madrugadas das grandes cidades incrustadas na selva. Mas só isso não basta.
Será necessário ler, ver e ouvir os grandes artistas da região. Por exemplo, em Verde Vagomundo, de Benedicto Monteiro, sentimos a água entrando na nossa pele, encharcando-nos, inundando-nos, afogando-nos. O poeta João de Jesus Paes Loureiro despe Belém como um homem tira a roupa de uma mulher muito bonita, devagar, sem pressa, degustando-a com todos os sentidos, até perder todos os sentidos na vertigem da lucidez. Então, a alma feminina, enigmática até para as mulheres mesmas, se revela como uma flor ao sol da manhã.
Assim, é preciso ler, para citar alguns pesos pesados, Euclides da Cunha, Ferreira de Castro, Dalcídio Jurandir, Benedicto Monteiro, João de Jesus Paes Loureiro, Gabriel García Márquez (Sim, ele mesmo!), além de ver os pintores da região, ouvir os músicos e ver a dança. É necessário singrar os rios, ver o céu de agosto, embriagar-se com o perfume dos jasmineiros enlouquecidos nas noites tórridas, embalar-se numa rede e ouvir o riso das caboclas, das negras, das portuguesinhas. Mas só isso não basta.Móvel, fluida, enganadora, habitante de uma zona morta, a verdade simplesmente não pode ser resgatada. A missão do repórter, então, é se aproximar, o mais perto possível, da verdade, mesmo movendo-se em terreno pantanoso. Entrevistando vários oficiais na Guerra da Criméia (1854), o correspondente do The Times de Londres, William Howard Russel, descobriu que “os relatos de testemunhas são, freqüentemente, contraditórios”.
O papa-chibé Lúcio Flávio Pinto é, de longe, o repórter, e ensaísta, amazônida que melhor revela a Amazônia, tanto no seu Jornal Pessoal quanto em livros, o último dos quais - Contra o poder – 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (edição do autor, Belém, 2007, 279 páginas) - revela os bastidores da sua trincheira pessoal. O texto de Lúcio Flávio Pinto é eficaz em destrinçar o enigma amazônico, em matar a charada do Trópico Úmido; isso só é possível porque Lúcio Flávio Pinto lança mão das mesmas ferramentas utilizadas por escritores que também foram jornalistas, ou jornalistas com sensibilidade de artista.
O repórter caminha sobre areias perigosas, procura chegar o mais perto possível da verdade, por meio da investigação e da coleta de provas, de forma a resgatar como as coisas eram. O crítico literário americano Carlos Baker identifica três instrumentos estéticos que servem para o registro de como as coisas eram: “o sentido do local, o sentido do fato e o sentido da cena”. Disse o escritor e jornalista americano Ernest Hemingway: “Se não tivermos geografia, um cenário de fundo, nada temos”. A fusão, pois, de local e fato, por meio da ação, gera a cena, móvel como a própria vida.
O escritor e jornalista italiano Curzio Malaparte, em despacho da Rússia, em 1942, escreveu para o Corriere de la Sera: “Sob meus pés, impressa no gelo como em cristal transparente, estava uma fileira de belos rostos humanos, uma fileira de máscaras de vidro, como num ícone bizantino. Estavam olhando para mim, fitando-me. Os lábios eram estreitos e gastos, o cabelo comprido, os narizes afilados, os olhos grandes e muito claros. Eram as imagens dos soldados soviéticos que haviam caído na tentativa de cruzar o lago. Seus pobres corpos, aprisionados durante todo o inverno pelo gelo, foram arrastados pelas primeiras correntes da primavera. Mas seus rostos permanecem impressos no límpido cristal verde-azulado. Observam-me serenamente e até pareciam tentar acompanhar-me com os olhos”.Fato: Segundo Guerra Mundial. Local: lago na Rússia. Cena: mortos que fitam um viajante. Aqui, o verbo fitar fez da notícia um registro vívido do fato. Deu-lhe ação, vida.
Ao erguer o edifício da reportagem de longe fôlego, o repórter deve considerar alguns pequenos truques. Estará, assim, despertando, no leitor, interesse permanente, o mesmo interesse que somente a ficção de primeira categoria pode proporcionar. Assim como o escritor, o jornalista classe A evita a falácia patética, que se trata de excesso de emoção. O excesso de emoção dificulta a descrição da realidade, ao passo que, ao controlar a emoção, o repórter verá o que realmente está acontecendo e descrever isso. Ora, sendo a falácia patética um erro de percepção, será, também, um erro de expressão, “já que o que foi visto erradamente não pode ser descrito veridicamente” - observa Carlos Baker.
O domínio da emoção resulta, segundo Baker, em “vermos aquilo que vemos, em vez daquilo que pensamos ver; aquilo que sentimos, em vez daquilo que somos supostos a sentir; e em dizer diretamente o que vemos realmente, em vez de apresentarmos uma versão falsa do que vemos”. A falácia apática é outro inimigo da verdade porque “a razão é tão fria e tensa que a emoção é inteiramente esmagada” - diz Baker. Enquanto a falácia patética deturpa a realidade, a falácia apática a imobiliza, e a intensidade, que é vida, dá lugar à tensão, que é morte.
Baker enumera ainda a falácia cinematográfica: “O mesmo que apontar um espelho e um microfone para a vida e registrar, com precisão absoluta, embora seletiva, todos os reflexos e sons”. O fato jornalístico registrado por meio de um espelho e um microfone é limitar a realidade a movimento, diferentemente do efeito produzido pelo sentido da cena, que é ação e, portanto, vida.
Ernest Hemingway desenvolveu um princípio estético a que chamou de “disciplina da percepção dupla”, que é a descrição do fato e da reação emocional sobre quem o vê. O jornalista americano Januarius Aloysius Mac-Gahan foi o pivô da guerra russo-turca (que teve início em 29 de abril de 1877) e pela independência da Bulgária. A gota d’água foi o que ele escreveu, que se constitui num exemplo de dupla percepção. O horror descrito pelo repórter foi perpetrado pelos curdos e bashibazouks turcos para esmagar a revolta búlgara de 1876. Mais de doze mil homens, mulheres e crianças tinham sido mortos.
“Acho que cheguei com uma disposição de espírito justa e imparcial e, certamente, deixei de lado a frieza. Há coisas demasiado horríveis para permitir algo assemelhado a uma investigação tranqüila; coisas cuja vileza o olho se nega a examinar e a mente se recusa a considerar. Deparamos com um objeto que nos encheu de piedade e horror. Era o esqueleto de uma mocinha que não tinha mais de quinze anos. Ainda estava vestida numa camisa de mulher, mas os pezinhos, dos quais os sapatos tinham sido retirados, estavam nus e, devido ao fato de a carne secar, em vez de se decompor, encontravam-se quase perfeitos. O procedimento parece ter sido o seguinte: eles agarravam uma mulher, despiam-na cuidadosamente, deixando-a de camisa e pondo à parte quaisquer enfeites ou jóias que por acaso tivesse sobre si. Então, tantos quantos assim o desejassem, violentavam-na, e o último homem a matava ou não, segundo a disposição com a qual se encontrasse.
“Fomos informados de que havia três mil pessoas jazendo neste cemitério apenas. Era uma visão horrenda - uma visão para apavorar a pessoa pelo resto da vida. Havia cabecinhas cheias de cachos ali, naquela massa apodrecida, esmagadas por pedras pesadas; pequenos pés que não chegavam ao comprimento de um dedo, nos quais a carne ressecara-se; mãozinhas de bebês projetavam-se para fora, como se pedissem ajuda - criancinhas que morreram espantadas com o reluzir dos sabres e as mãos vermelhas dos homens de olhos ferozes a manejá-los; filhos mortos encolhidos de susto e terror; mães que morreram tentando proteger seus rebentos, com seus próprios corpos fracos, todos jazendo juntos ali, apodrecendo numa única massa horrenda.”
Um truque final: ao pintar-se o painel da reportagem de longo fôlego, o ato de seleção verbal é de vital importância - o que quer dizer eliminar todas as palavras falsas. “Somente através de um cuidado constante, nunca desencorajado, na formação e ritmo das frases, é que a luz da sugestividade mágica pode ser elevada a atuar por um instante evanescente sobre a superfície do lugar das palavras: das velhas, velhas palavras, já desgastadas, tornadas muito tênues por eras de uso descuidado” - disse Joseph Conrad, o autor de No Coração das Trevas.
A posição da palavra na frase, o ritmo que ela imprime, tudo isso deve ser considerado. Em Os Sertões, os mandacarus assumem vida humana, “despidos e tristes, como espectros de árvores”, e o ritmo pode ser localizado em frases como “Longos dias amargos dos vaqueiros” - um decassílabo com cesura na sexta sílaba. Versos como esses são incontáveis em Os Sertões, abrindo a porta do texto jornalístico para a poesia.
Ao resgatar o fato jornalístico na reportagem de longo fôlego, mantendo as personagens vivas, como fez Norman Mailer em A Luta, o repórter terá alcançado o ponto culminante da estética jornalística: a verdade.
Assim, a Amazônia só será plenamente revelada, amada e divulgada se nos despirmos de todos os preconceitos e a compreendermos nas suas misérias e sob a intensidade do céu de agosto, em Macapá; de tão azul, sangra.

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